sábado, 12 de maio de 2012

Bourdieu pensando o sistema de ensino e a naturalização das desigualdades sociais

No texto, de 1966, A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura, o sociólogo francês Pierre Bourdieu desenvolve um de seus principais conceitos teóricos, o capital cultural"; através do qual explica o atraso “educacional” das classes populares. Fundamentado em dados empíricos, o autor faz uma crítica vigorosa à função desempenhada pelas instituições escolares francesas. Salvo às especificidades da realidade escolar da França, da pesquisa sociológica científica e da época em que Bourdieu escreve, acredito que, a partir de seu texto, podemos ainda pensar algumas questões à política e à educação contemporânea no Brasil.

O sociólogo abre o texto com a seguinte paulada: “É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da ‘escola libertadora’, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade as desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” (BOURDIEU, 2007, p. 41).

Por que a escola não é um fator de mobilidade social? Bom, para o autor, existe uma série de aspectos culturais que precisam ser levados em conta para explicar a mobilidade social (aquilo que pode fazer com que uma pessoa saia de uma classe social inferior para uma superior). Dentre os aspectos das relações sociais que levam ao êxito escolar e à ascensão social, são perceptíveis algumas formas grosseiras: (a) Recomendações, quer dizer, o famoso “Quem Indica”. (b) Ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar. Pais, familiares e outros que auxiliam os alunos nas tarefas escolares; e as atividades fora do âmbito da escola, como cursos de idiomas ou de disciplinas específicas como português e matemática (famoso Kumon) e de pré-vestibulares, no atual caso brasileiro. (c) Informação sobre o sistema de ensino e perspectivas profissionais. Este ponto se refere ao conhecimento detalhado de profissões e de particularidades de estudos conforme as exigências de uma prova classificatória, como no vestibular ou ENEM. Porém, nenhuma dessas três formas consegue dar conta da sofisticação cultural relacionada à classe social do aluno, que podemos enumerar em dois tipos: (1) Transmissão do capital cultural da família e (2) do Ethos (como proceder) no agir ao capital cultural e à instituição social. Essas duas heranças culturais que diferem entre as classes sociais são responsáveis pela diferença inicial das crianças diante da experiência escolar e pelas suas taxas de êxito. Tento explicar minimamente a seguir os valores culturais sofisticados captados por Bourdieu, que estão implícitos na relação familiar – os modos de aprender e de agir, e as expectativas de futuro.

A transmissão do capital cultural

As pesquisas do sociólogo Paul Clere mostram que a parcela de bons alunos em uma amostra de 5ª série cresce em função da renda de suas famílias. Entretanto percebe-se que aqueles alunos cujos pais possuem formação superior têm maior sucesso escolar. Ainda assim os alunos de famílias que possuem diplomas iguais, muito pouco diferem entre si, mesmo que a renda de uma ou de outra família seja superior. Isto demonstra que dentro das heranças dois fatores são determinantes para o êxito escolar: a renda e o “conhecimento” dos familiares. Mas, acima de tudo, o conhecimento dos membros da família. Este está à frente da renda. O que significa que o sucesso da criança na escola está diretamente ligado à cultura. Esta tem um valor maior do que o financeiro, embora geralmente os dois apareçam atrelados.

Podemos dizer então que o capital cultural possui uma relação direta com os atributos familiares (cultura e renda), logo, com a rede sociocultural da qual a criança participa. A herança cultural deve levar em conta não somente o nível cultural do pai ou da mãe, mas também o dos demais componentes da família, especialmente, o dos avós. As localidades regionais onde se residiu para os estudos na adolescência e na juventude também precisam ser colocadas nesse cálculo. Pois em determinados lugares existe uma maior disponibilidade de bens simbólicos, como museus, teatros, parques culturais, cinemas, instituições escolares de melhor qualidade, centros de cultura e etc. Soma-se a estes dois aspectos o conjunto das características do passado escolar, como o tipo de curso secundário e o tipo de estabelecimento – se municipal, estadual, federal ou privado. Para a pesquisa sociológica sobre as causas do êxito escolar, é necessário “consequentemente, um modelo que leve em conta essas diferentes variáveis – e também as características demográficas do grupo familiar, como o tamanho da família – que permita fazer um cálculo muito preciso das esperanças de vida escolar” (p. 43). É perceptível que Bourdieu atribui um valor muito maior a família do que a escola. Ele conta que os filhos das classes populares com maior propensão a ingressar na faculdade têm famílias diferentes da média de sua categoria, seja por seu nível cultural global ou por seu tamanho.

Contudo os níveis de instrução da família são apenas indicadores e não mostram quais conteúdos são transmitidos às crianças. Nisso as pesquisas demonstram que o capital cultural mais rentável para o sucesso escolar é constituído pelas informações e conhecimentos relacionados ao mundo universitário, à facilidade verbal e à cultura livre adquirida nas experiências extra-escolares. Quer dizer que a transmissão cultural eficaz é a que não está separada da vida comum do aluno e que não se trata de uma tarefa específica que ele fará metodicamente, mas um eixo de relações culturais que participa de sua vida de maneira integral sem parecer forçosa. Neste sentido, os alunos de família rica e culta interagem numa cultura de gostos, de linguagens e de fazeres propícios ao que é cobrado nas instituições formais. Por conta de haver essas relações desde “berço” acredita-se, enganosamente, que as qualidades destas crianças, transmitidas quase por osmose, são dons naturais. Ao contrário desta crença, Bourdieu (p. 46) escreve que: “o êxito com os estudos literários está estreitamente ligado à aptidão para o manejo da língua escolar, que só é uma língua materna para as crianças oriundas das classes cultas”, enquanto as crianças das classes populares precisam se desdobrar para fugir do linguajar próprio ao seu cotidiano.

A escolha do destino e a questão do ethos familiar

Geralmente a atitude de pais e de crianças em relação à escola está relacionada às suas posições sociais. Esse caso é particularmente importante no âmbito do ensino francês deste período. Pois os alunos após terminarem o nível básico precisavam mudar para outra escola. Entre as opções, as melhores “públicas” eram concorridas através de exames, de indicações e de regularidades de notas boas no ensino básico. O pai do aluno esperava que ele atingisse um bom desempenho nas séries iniciais, sobretudo, baseado num certo índice medido conforme os incentivos dos professores, para que ele continuasse os estudos e/ou concorresse a uma vaga nas melhores escolas. As pesquisas de Bourdieu mostram que “a escolha da escola e das maneiras do ensino (técnico ou teórico) tem a ver com as lembranças das experiências direta e imediata pela estatística intuitiva das derrotas ou dos êxitos parciais das crianças de seu meio”. A desesperança, não raras vezes, tomam as classes populares e então dizem: “Isso não é para nós”. O que significa: “Não temos meios para isso”.

As condições econômicas e culturais das classes médias também são diferentes das classes superiores, haja vista que a cada dois alunos das classes superiores que acessam a faculdade, somente um aluno das classes médias consegue. Mas “diferentemente das crianças das classes populares, que são duplamente prejudicadas no que respeita à faculdade de assimilar cultura e a propensão para adquiri-la, as crianças das classes médias devem à sua família não só os encorajamentos ao esforço escolar, mas também um ethos de ascensão social e de aspiração ao êxito na escola e pela escola, que lhe permite compensar a privação cultural com a aspiração fervorosa à aquisição de cultura” (BOURDIEU, 2007, p. 48).

O capital cultural e o ethos combinam-se na concorrência para definir as condutas escolares que excluirão os alunos das classes populares. A questão da desesperança e do ethos aparece de modo paradoxal para as crianças pobres, pois se espera que compensem suas carências de capital cultural através de um desempenho melhor que aqueles que possuem melhores condições econômicas e culturais. Desta maneira, aponta Bourdieu (p. 50): “o princípio geral que conduz à superseleção das crianças das classes populares e médias estabelece-se assim: as crianças dessas classes sócias que, por falta de capital cultural, têm menos oportunidades que outras de demonstrar um êxito excepcional, devem, contudo, demonstrar um êxito excepcional para chegar ao ensino secundário”.

Como a escola cumpre a função de conservar as desigualdades sociais?

As práticas e os métodos de ensino na escola são homogêneos, não atentam para as especificidades como as carências de cada pessoa associada a uma dada classe social. A escola trata todos “os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, assim, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura”. Pode-se afirmar que a escola nega o princípio de isonomia da justiça liberal (inclusive), pois não trata particularmente cada um da maneira adequada à suas necessidades. Ou seja, há um tratamento igual (baseado no modelo da cultura formal das classes superiores) que reproduz as desigualdades já existentes tanto nas condições simbólicas (como a linguagem) quanto nas condições materiais (econômicas).

Segue uma longa citação que acho interessante fazê-la para finalizar a resenha: “Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas pela sua posição na hierarquia social, e operando uma seleção que – sob as aparências da equidade formal – sanciona e consagra as desigualdades reais, a escola contribui para perpetuar uma sanção que se pretende neutra, e que é altamente reconhecida como tal, nas aptidões socialmente condicionadas que trata como desigualdades de ‘dons’ ou de mérito, ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em ‘distinção de qualidade’, e legitima a transmissão da herança cultural. [...] Além de permitir a elite se justificar de ser o que é, a ‘ideologia do dom’, chave do sistema escolar e do sistema social, contribui para encerrar os membros das classes desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala, levando-os a perceber como inaptidões naturais o que não é senão efeito de uma condição inferior, e persuadindo-os de que eles devem o seu destino social à sua natureza individual e à sua falta de dons. O sucesso excepcional de alguns indivíduos que escapam ao destino coletivo dá uma aparência de legitimidade à seleção escolar, e dá crédito ao mito da escola libertadora junto àqueles próprios indivíduos que ela eliminou, fazendo crer que o sucesso é uma simples questão de trabalho e de dons” (BOURDIEU, 2007, p. 58-59)

Nossas considerações

Bourdieu, quando defende a historicidade dos bens culturais, dá aula de história para os políticos contemporâneos e para os defensores da "igualdade de oportunidades" do atual modelo liberal. Mostrando a quem quiser ver que não vivemos no estado de natureza, mas que existe "positividade" (no sentido de relevos criados pelos homens) nas relações sócio-culturais que permeiam as ascensões sociais e os êxitos escolares. Este modelo de sociedade e de instituições sociais desta época não são naturais. Esse jogo é inventado, arbitrado e mapeado, embora se acredite que sempre foi assim e assim deverá continuar. Lendo Bourdieu, lembrei-me de um trecho de E. P. Thompson (1987) em que o historiador descreve o quanto os lavradores, que trabalhavam no campesinato sofreram com o cercamento das terras produtivas (e expulsões), concomitante ao processo de urbanização. Tiveram que ralar sol a sol nas fábricas; viver a novidade do tempo programático do relógio; e conviver com as constantes epidemias na Europa. Muitos resistiram, muitos morreram. Mas as gerações futuras, filhos desses homens retirados do campo, não sabiam mais como era antes, então, aceitavam as condições como naturais, por mais gritantes que elas fossem. Essa resiliência foi essencial para o desenvolvimento do capitalismo, mas é importante não aceitá-la como condição última para nossa existência. Neste sentido apesar de não concordar com alguns pontos das lutas de movimentos sociais e raciais, acho importante buscar juridicamente o que vem sendo lhes negado social e culturalmente. Isto é, aquilo que através das experiências práticas não vem sendo concretizado; seus acessos ao consumo, a liberdade de expressão e ao respeito pela personalidade dentro do próprio capitalismo. Estas lutas, jurídicas ou não, são criações de novas positividades, de novas realidades. Talvez daqui a alguns anos ninguém mais levante questionamento sobre essas "mudanças", assim como não se questiona mais sobre a propriedade privada e o aprisionamento de pessoas (o que é sempre lamentável).

Segundo a lição de Bourdieu, não é possível haver igualdade diante das desigualdades pré-existentes. Como cobrar as mesmas coisas para pessoas com condições materiais e simbólicas totalmente diferentes? As estatísticas dos vestibulares da UFU mostram que em dez anos nenhum aluno da rede pública conseguiu ingressar no curso de medicina (o mais concorrido desta instituição). Seria porque nasceram burros? Porque estudaram pouco? Ou porque não estudaram nas mesmas instituições e cursinhos que os alunos aprovados? Ou porque não tiveram tempo ($) suficiente para aprenderem inglês no CCA e matemática no Kumon? Talvez seja porque seus professores da rede pública precisaram pegar 32 aulas por semana em 18 salas diferentes, com cerca de 40 alunos em cada (360 alunos ao todo), fazendo com que seu tempo fosse bastante pequeno para que pudessem preparar melhor as aulas. Aulas as quais a direção da escola e o governo não deram apoio nenhum além do livro didático de História escrito por um bacharel em Direito. Ou então talvez porque os alunos tiveram que trabalhar de atendente de telemarketing para ajudar nas despesas de casa. Vai saber! Talvez sejam mesmo preguiçosos, sem méritos e burros inatos. Por isso seus lugares atualmente estão reservados nas faculdades particulares, enchendo os bolsos dos donos, não só com o dinheiro suado de mão-de-obra semi-escrava, mas também com a grana de programas paliativos e de financiamentos custeados pelo dinheiro público, estratégia esta que acaba desviando o foco principal dos problemas educacionais do país.
 
Referências:
BOURDIEU, P. A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In:______. Escritos de educação. Organizadores Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 41-64.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, vol. II: a maldição de Adão trad. Renato Busatto Neto, Cláudia Rocha de Almeida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

3 comentários:

  1. Texto realmente muito bom, e achei interessante, mais ainda por se tratar de uma analise eu diria da obra de Pierre Bourdieu, já estudei um pouco sobre ele e creio que com o passar do tempo, ele vai surgi no meu curso universitário ^^ bjão munhoz sempre que der estarei por aqui, até indiquei saeu blog aos meus amigos de curso de filosofia, e agradeço seu comentário lá no Anarco ^^

    ResponderExcluir
  2. Respostas
    1. Para citar este post do blog é assim: ALVES, M. P. Bourdieu pensando o sistema de ensino e a naturalização das desigualdades sociais. Publicado 12 de maio 2012. In: Tempos Safados: contemporaneidades e humanas em geral. Disponível em: http://tempossafados.blogspot.com.br/2012/05/bourdieu-pensando-o-sistema-de-ensino-e.html Acesso em: 30 set. 2016.

      Espero ter ajudado.

      Excluir

Real Time Analytics