sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Os três suicídios de Durkheim e a morte da sociedade no caso Kaiowas

Escrita em 1897, a obra O Suicídio é um clássico da sociologia. Até hoje ela é lida por estudantes e pesquisadores das ciências humanas como exemplar singular de fundamentação empírica na análise da sociedade. Establet (2009) aponta que trabalhos de Durkheim relacionados às esferas do trabalho e da religião não foram tão utilizados quanto O Suicídio. Muito pelo contrário, algumas tabelas e mapas usados em obras sobre religião, mais lembram os mapas em O Suicídio do que, por exemplo, As Formas Elementares da Vida Religiosa. Neste texto, faremos uma explicação sucinta sobre as três formas de suicídio caracterizadas por Émile Durkheim, e um breve comentário relacionado ao caso dos índios Kaiowas.

Embora acreditemos que o fenômeno comportamental do suicídio esteja ligado muito mais a ordens individuais do que coletivas, sobretudo por se tratar, na grande maioria dos casos, de acontecimentos isolados, Durkheim defende que as causas destes fatos são gestadas na e pela sociedade. O autor define suicídio como o ato praticado pelo indivíduo com o intuito de desfazer-se de sua vida, sendo que o objetivo final deve ser conscientemente expressado pelo causador do ato. Ou seja, o suicida deve saber necessariamente o resultado final que ele mesmo está praticando independente da participação de outros. Durkheim divide o suicídio em três tipos: egoísta, altruísta e anômico.

O suicídio egoísta é aquele cujos interesses do indivíduo estão acima da sociedade. Isto acontece, segundo o sociólogo, especialmente em sociedades “superiores”, mas com determinadas carências de integração entre sociedade e indivíduo – é preciso salientar aqui que Durkheim chama de “superiores” as sociedades ocidentais modernas em contraposição às sociedades “primitivas”, tribais ou indígenas. Durkheim diz que o homem é um ser duplo, possui uma personalidade individual e uma coletiva, esta última representa um padrão comum entre todos os indivíduos. Quando a sociedade, por alguma falha, não consegue penetrar seus valores coletivos de pertencimento e de existência no indivíduo, este pode causar sua própria morte caso algo relacionado apenas à sua vida particular tenha originado uma decepção, uma desilusão, uma descrença; tendo em vista que os valores individuais são, nesta situação, maiores do que o sentido de existência ligado ao coletivo.

Durkheim (1858-1917)

Se o baixo grau de integração entre sociedade e indivíduo pode acarretar o suicídio egoísta, o oposto, quer dizer, o grau acentuado de integração entre sociedade e indivíduo, pode desencadear o suicídio altruísta. Neste caso, o suicida não encontra valores em sua existência individual para continuar vivo, pois os valores da sociedade estão muito acima dos pessoais. Este fenômeno ocorre com maior freqüência nas sociedades “inferiores”, onde existe uma integração demasiada, sobretudo demonstrada pela religião (crença, rituais comuns) que dá o significado de existência para os membros que compõem a comunidade. Durkheim cita como exemplo o suicídio da mulher após a morte do marido. Primeiro, os indivíduos são tratados como membros, como braços de um corpo do qual não teriam existência fora dele. A mulher, em alguns casos, é somente uma extensão do marido, portanto, não há mais sentido que ela viva após a morte do esposo. Outro exemplo ilustrativo é o suicídio provocado depois da morte de um líder religioso que norteava a direção de existência dos seguidores, deste modo, é preferível acompanhar o mestre no além-túmulo de que viver uma vida sem direção. Portanto, o suicídio altruísta caracteriza-se pelo fato de existir algo maior que o indivíduo, fazendo com que, de acordo com o acontecimento, o sentido de continuar existindo não esteja mais nesta vida.

O último tipo de suicídio descrito por Durkheim é chamado de anômico. Entende-se por anomia um afrouxamento nos laços sociais, mas diferentemente do fator individual, que caracteriza o suicídio egoísta, este tem a causa na própria sociedade. Temos assim, épocas de crises econômicas densas e abruptas, que alteram de maneira significativa os valores sociais do coletivo e afetam com relevância o cotidiano do indivíduo e causam o suicídio anômico. Durkheim explica que o suicídio anômico é causado quando o indivíduo não reconhece mais sua função e utilidade em uma sociedade por causa de uma transformação gestada por ela própria, que suprime os valores que davam sentido a existência individual dos membros em integração nesse organismo. Outro fator, em sociedades avançadas, é quando o indivíduo possui um padrão de vida econômica muito alta, e então, não reconhece seus limites, não consegue satisfazer-se com coisas simples e sempre aparenta descontentamento.

Pitacos safados!

Acredito que a obra de Durkheim ainda serve para nos ajudar a explicar os suicídios na contemporaneidade (embora sua pesquisa seja direcionada para populações específicas num recorte temporal igualmente particular). Entretanto, é necessário expandir esses recortes provisórios (de três tipos) e talvez entender a relação entre eles. A distância de uma pessoa às demais parece explicar um tipo de suicídio. Que tipo é esse? Acredito que esteja próximo do egoísta e do anômico. Nos países nórdicos como Finlândia, Islândia, Noruega e Dinamarca os suicídios são recorrentes. População diminuta e frio intenso fazem com que muitas pessoas se isolem no interior dos seus quartos, interagindo com o mundo virtual e se esquecendo do social. Opa! Mas independente das condições climáticas e demográficas essa parece ser uma situação global na contemporaneidade. Só que, diferentemente dos países nórdicos, os suicídios não tem aumentado por aqui. Não, não. Preferimos nos refugiar em clínicas psicológicas, em centros terapêuticos e em remédios e drogas do prazer instantâneo do que enfrentarmos com coragem o ato mais livre da vida, segundo Sêneca, ou a "linha de fuga" quando não há mais linha de fuga, como fez Deleuze.

Durkheim ainda se mostra atual para explicar por que o índice de suicídio é proporcionalmente maior entre os ricos e a classe média do que entre os pobres. É porque o social faz mais sentido para os pobres. O acreditar em algo. E mais. Lutar por algo na vida, aliás, lutar pela própria vida, pela sobrevivência mais do que as demais classes. Talvez por estarem menos “individualizados” e correlativamente menos sozinhos do que nós, os burgueses sem religião. Mas Durkheim é insuficiente para esclarecer a alta taxa de suicídios dos vestibulandos coreanos. É egoísta por colocar seus valores individuais profissionais a frente dos demais? Ou é altruísta por que o peso do olhar dos outros (da sociedade) sobre o “fracassado”, que não conseguiu a vaga, é pesado demais para suportar? Ou é anômico por que a única utilidade de respeito que a sociedade atribui só pode ser desenvolvida por um profissional graduado em uma boa universidade? Em vez de separar esquematicamente como o mestre positivista fez, prefiro entender um entrecruzamento de fatores onde seria impossível dissociar um de outro. A meu ver, o egoísta não é o oposto do altruísta, mas se complementam e não podem ser compreendidos fora de uma dinâmica de transformação da sociedade. O “ego” (assim como o “eu”) é uma construção social. Fora de um social que torna possível sua construção e sua diferenciação de outros “eus” ele simplesmente inexiste. 

Por outro lado, o suicídio dos índios kaiowas, que ganhou repercussão nas redes sociais essa semana, possui algum grau de similaridade com o suicídio anômico. Estes suicídios já acontecem há algum tempo. Os motivos são diversos, mas todos eles parecem relacionados com a penetração da cultura ocidental nas aldeias, mexendo de maneira significativa com o imaginário social dos índios que, convenhamos, já não são mais tão índios. Estão sim, contaminados pelos nossos valores e maneiras de pensar o mundo. Inclusive, já recorrem a meios escritos para comunicarem a respeito de si, como pudemos ver na carta que está rodando na grande rede (que fomos “fisgados”). O sentido de pertencimento a uma determinada comunidade que, por sua vez, tem uma relação bastante particular com a terra, carregada por uma noção tanto material quanto simbólica, tem se fragmentado cada vez mais que a cultura do homem-branco adentra a área de preservação. Área essa delimitada, pelo “bondoso” homem-branco, para os índios morarem. Que disparate! Queremos que os indígenas reconheçam um conceito que nós ocidentais inventamos, o de fronteira. Quando, na verdade, nem nós reconhecemos ou respeitamos esse conceito, já que invadimos o território de homens-brancos e de indígenas. Quem são os primitivos? Podem até ser eles, que não inventaram o avião, o celular, a Internet ou o anticoncepcional, mas os hipócritas somos nós mesmos. Invencíveis na arte de dominar a ciência técnica, mestres em criar esquemas para enganar a nós mesmos, porém mais idiotas ainda na arte de (des)respeitar os conceitos que nós mesmos inventamos.

Sinceramente, vejo as manifestações nas redes sociais como mais um reflexo da nossa hipocrisia, da nossa arrogância e do nosso cinismo. Sim, isso mesmo. Se os índios estão desta maneira é porque nós somos os responsáveis. Nossa população aumenta e a deles diminui. Dizemos que precisamos de mais espaço para plantar, produzir e extrair matérias primas para fabricarmos produtos e alimentos (in)dispensáveis para a vida moderna. Então, vamos fazer controle de natalidade? “Ah, mas isso é atentar contra a espontaneidade da vida”, dirão os republicanos. “Isso é querer impor uma coerção a liberdade dos humanos”, dirão os democratas. “Isso é confiar demais que a ciência pode governar a sociedade”, dirão os pós-modernos. “Isso vai envelhecer a população, reduzir a mão-de-obra e falir a previdência social”, dirão os economistas de botequim. Então, vamos fretar dez ônibus e irmos à Brasília pressionar o governo para criar uma lei de proteção indígena (como se isso já não existisse)? “Isso não adianta, ‘eles’ só sabem roubar”, dirá o cidadão comum, que mesmo assim continua votando “neles”. “Não posso, tenho que trabalhar”, dirá o trabalhador. “Não posso, tenho que estudar”, dirá o estudante. “Não posso, tenho que entregar um projeto...” “Tenho que assistir o Coringão em Tóquio...” As desculpas só aumentarão. Ok, então o que podemos fazer? “Ah, vamos compartilhar a imagem deles no facebook”. Eu sei que podemos fazer muito mais que isso. Mas será mesmo que queremos de verdade?

Acho que é impossível nossa sociedade cometer um suicídio coletivo como os Kaiowas mencionaram na carta, primeiro porque não temos mais “coletivo”, segundo porque já estamos mortos.

Referências:
DURKHEIM, E. Suicídio: definição do problema; suicídio egoísta; suicídio altruísta; suicídio anômico. In:______. Émile Durkheim: sociologia. Organizador José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1981, p. 103-122.
ESTABLET, Roger. A atualidade de 'O Suicídio'. In: MASSELLA, Alexandre Braga (org.). Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2009, p. 119-129.

Letra da música “Kaiowas” da banda Sepultura:

This song is inspired by
A brazilian indian tribe called "Kaiowas"
Who live in the rain forest
They committed mass suicide
As a protest against the government
Who was trying to take away their land beliefs


Link da carta dos Guarani-Kaiowa:

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A historiografia marxista inglesa

Revista inaugurada pelo
 marxismo inglês
O que é? Um conjunto de trabalhos produzidos por um grupo de historiadores e de teóricos de outras áreas formado na década de 60, que adotou uma linha de pesquisa da história a partir da obra de Marx, porém em contraposição a perspectiva dogmática do marxismo, chamada de “marxismo vulgar” por Eric Hobsbawm. Esse historiador é um dos expoentes do marxismo inglês, assim como E. P. Thompson, Christopher Hill, Perry Anderson, Tom Nairn, Raymond Williams e outros.

Existem divergências teóricas e metodológicas entre os pesquisadores marxistas dessa corrente de pensamento, porém podemos dizer que a proposta do grupo busca construir uma análise da sociedade como uma totalidade em movimento, na qual a experiência humana não se encontra submissa a qualquer forma de determinismo mecânico. Mais do que isso, além das abordagens socioeconômicas relativas ao interesse sobre os processos estruturais de desenvolvimento do capitalismo, bastante comuns à tradição do marxismo, também há abordagens ao cultural que até então era uma carência no pensamento marxista.

A renovação da perspectiva marxista surgiu após o diálogo com as obras de história produzidas pela revista francesa dos Annales, que destacaram o papel do social e do econômico em combate a historiografia praticada no século 19 que alçava a esfera política como centro da história protagonizada por heróis, reis, autoridades, Estado, Igreja através da narração de eventos factuais e lineares pesquisados em documentos oficiais, considerados neutros. O marxismo inglês foi também uma resposta contrária a política stalinista da União Soviética e a produção historiográfica ligada a ela.

Hobsbawm (1911-2012)
Segundo Hobsbawm (1998), o marxismo vulgar, do qual quer se distanciar, não representa o pensamento marxista maduro e está calcado mais em escolhas de pontos da obra de Marx do que em sua totalidade. Ele elenca sete características presentes nas pesquisas do “marxismo vulgar”. Primeira, uma interpretação economicista da história. A economia é o fator fundamental do qual os demais seriam apenas reflexos. Segunda, o modelo de “base e superestrutura”, usado como simples relação de dependência da primeira sobre a segunda. Terceira, a superestrutura era explicada simplesmente pelo interesse de classe e pela luta de classes. Quarta, defesa de leis históricas e inevitabilidade histórica. Acreditava-se acertadamente no desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, com exclusão do contingente em longo prazo. Só que isso acabava por cair numa regularidade rígida e imposta de determinismo mecânico, a ponto de não admitir alternativas na história. Quinta, os temas de investigação da história derivavam dos próprios interesses de Marx; ou então (sexta), dos movimentos sociais animados por sua teoria. Sétima, a natureza e os limites científicos da historiografia eram justificados pela história economicista, supostamente estes serviam para explicar motivações e métodos de historiadores que diziam fazer a busca pela verdade de maneira imparcial. Embora houvessem grandes problemas neste tipo de pesquisa, o marxismo vulgar, no entender de Hobsbawm, serviu para destruir paulatinamente a velha história (do séc. 19).

Para o historiador inglês, a maior importância do marxismo foi penetrar as ciências sociais com a teoria da "base e superestrutura" que disserta sobre os diversos níveis em interação na sociedade, independentemente se o pesquisador aceita ou não uma hierarquia entre eles. Mais do que isso, a teoria estrutural-funcionalista do marxismo criticou o positivismo por querer estudar fatos humanos baseado em fatos não-humanos, ou seja, equiparar as ciências sociais às ciências naturais da maneira de Comte. Dois fatores principais tornam o marxismo diferente das outras teorias estrutural-funcionalistas: a hierarquia dos fenômenos sociais – tais como base e superestrutura –, e a existência de tensões internas (contradições) na sociedade que contrabalançam a tendência do sistema se manter como um interesse vigente, ou seja, a insistência na mudança através da história (tempo).

R. Williams (1921-1988)
Por outro lado, preocupados com questões socioculturais ou culturais, autores como Raymond Williams e Edward P. Thompson criticaram o modelo estrutural-funcionalista de base econômica absoluta do marxismo. Thompson não poupou críticas nem a membros do marxismo inglês como Perry Anderson e Tom Nairn. Tanto Thompson, como Williams, propõe uma interpretação inovadora do conceito “modos de produção” da teoria materialista de Marx. Modos de produção, na opinião destes teóricos, não se referem somente às esferas produtivas da economia, do trabalho e de suas relações sociais durante o processo de fabricação de produtos e mercadorias; ou seja, de uma suposta “base econômica” que hierarquicamente determina a cultura. Porém, se referem às maneiras através das quais os sujeitos em suas relações sociais com os outros e com o ambiente (através de suas experiências) produzem cultura. A consciência é determinada pelo ser social em diferentes práticas, econômicas e/ou não-econômicas. Apesar do trabalho de Williams ser voltado para a literatura (para entender contra-hegemonia), o qual poderíamos situar como uma especialidade dos estudos culturais, o conceito de cultura nestes dois autores é mais abrangente, tomada num significado antropológico de totalidade dos fenômenos humanos. Nesse sentido, todas as práticas sociais, inclusive as artes, as religiões, os costumes, os rituais são modos de produção da realidade e constituem a maneira como os sujeitos pensam e agem. É a chamada “história de baixo para cima”.

Para Williams (2005), a teoria da cultura no marxismo clássico leva em conta a base determinante e a superestrutura determinada. Mas deve-se abandonar este princípio por outro: “a proposição de que a existência social determina a consciência”. Pois, Marx rejeita a ideologia que enfatiza o poder de certas forças exteriores ao homem como uma consciência abstrata determinante, e coloca a origem da determinação nas próprias atividades humanas. O significado de determinação comporta dois sentidos pelo menos: o de teologia, de que uma força controla de fora toda a atividade humana; e o de experiência da prática social, uma noção de determinação como algo que estabelece limites e exerce pressões. Em geral o marxismo tem usado o “segundo” como se fosse o “primeiro”, de previsão e controle. É preciso, portanto, se afastar dele para não acreditar que os modos de produção são estáticos e homogêneos.

Thompson concorda com boa parte das proposições de Williams. O autor se tornou conhecido após escrever A Formação da Classe Operária Inglesa [1963], uma obra em três volumes que solapa as interpretações deterministas econômicas do marxismo clássico, inclusive algumas ideias de Engels. Para Thompson (1987), a classe operária inglesa não foi um produto mecânico da exploração do trabalho na Revolução Industrial, todavia sua consciência foi formada a partir de um modo de produção cultural ligado as experiências sociais anteriores ao trabalho nas fábricas. Numa análise histórica de transformação das condições materiais do ambiente, muitos fatores são considerados para a constituição da consciência de classe: o cercamento de terras no “pré-capitalismo”, as especificidades dos ofícios de trabalho, com mais autonomia ao trabalhador, mudanças nas maneiras de viver, sobretudo com o tempo do relógio, os direitos consuetudinários sobre a terra produtiva, as tradições coorporativas que uniam e protegiam os trabalhadores, o florescimento de religiões evangélicas (como o metodismo) que solidificavam os laços entre os membros em momentos de fraqueza, o imaginário social da Inglaterra sobre um tempo mítico, a fragmentação das concepções morais calcadas nos usos e costumes e etc. São tantas especificidades relativas a cada grupo e região que o autor prefere usar o termo “classes operárias” para operacionalizar conceitualmente a pluralidade de trabalhadores e ofícios.

Em Costumes em Comum, Thompson (1998) novamente volta sua atenção para os costumes ingleses do século 18 e 19. Através de uma perspectiva etnográfica, ele quer compreender determinados rituais enquanto formas de resistências e lutas da cultura popular à cultura da elite. O historiador desenvolve também o conceito de “economia moral”, baseado na ideia de que o termo economia designava um significado um pouco diferente do que temos hoje em relação a época em que Marx escreveu. Esta noção se refere às práticas culturais antigas que regulamentavam os costumes, inclusive, as relações de troca, evitando os açambarcamentos e possíveis usuras dos comerciantes. Entre outras coisas, era aquilo que impedia moralmente os fazendeiros de venderem suas colheitas para intermediários, obrigando-os a irem vender seus produtos no mercado para que o preço não aumentasse com a inclusão de atravessadores nas transações comerciais.

Sobre as concepções marxistas que ressaltam a primazia do econômico (como “mais real”) a partir da qual as normas, os costumes, os hábitos e os pensamentos seriam meramente reflexos secundários (“menos reais”), Thompson escreve o seguinte: “Uma divisão arbitrária como essa, de uma base econômica e uma superestrutura cultural, pode ser feita na cabeça e bem pode assentar-se no papel durante alguns momentos. Mas não passa de uma ideia na cabeça. Quando procedemos ao exame de uma sociedade real, seja qual for, rapidamente descobrimos (ou pelo menos deveríamos descobrir) a inutilidade de se esboçar respeito a uma divisão assim. Incluídos os marxistas, os antropólogos têm insistido longamente sobre a impossibilidade de se descrever a economia de sociedades primitivas independentemente tanto dos sistemas de parentesco segundo os quais estas se estruturam quanto das obrigações e reciprocidades de parentela que são endossadas quanto impostas pelas normas e pelas necessidades. Mas é igualmente verdade que nas sociedades mais avançadas, distinções daquele mesmo tipo não são válidas. Mal podemos começar a descrever as sociedades feudal ou capitalista em termos ‘econômicos’, independentemente das relações de poder e dominação, dos conceitos de direito de uso ou de propriedade privada (e leis correspondentes), das normas culturalmente sancionadas e das necessidades culturalmente formadas características de um modo de produção. Nenhum sistema agrário fica em pé após um dia sem os complexos conceitos de direito de uso, de acesso e de propriedade. Onde devemos colocar esses conceitos: na ‘base’ ou na ‘superestrutura’? (2001, p. 254-5)".

Leia também: "A receita de Marx".

Referências:

BARBOSA, W. Marx e a Historiografia no século XX. In: ALENCAR, M. (Org.). A História da História. Goiânia: Editora UCG, 2002, p. 65-103.
HOBSBAWM, E. O que os historiadores devem a Karl Marx? In:______. Sobre história. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
SHUELER, A. Marxismo e historiografia no reino de Vitória: as contribuições de Edward Palmer Thomspon. Verinotio: Revista On-line de Educação e Ciências, nº 6, ano III, maio de 2007.
THOMPSON, E. P. Folclore, antropologia e história social. In:______. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p. 227-269.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
WILLIAMS, R. Base e superestrutura na teoria marxista. Revista USP, São Paulo, nº 65, p. 201-224, março/maio, 2005.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O leilão das esposas: E. P. Thompson investiga os costumes ingleses

No livro Costumes em Comum, o historiador Edward Palmer Thompson descreve e analisa algumas práticas sociais peculiares na cultura dos trabalhadores ingleses nos séculos 18 e 19. Alguns desses “costumes” eram de criação recente e representavam as reivindicações de novos “direitos”. Essa pesquisa histórica contraria boa parte dos especialistas que acreditam que no século 18 os costumes populares estavam em declínio devido uma pressão por modernização que vinha de cima para baixo. A abordagem marxista de Thompson privilegia a perspectiva que enxerga os conflitos de classe em torno dos costumes. As pessoas comuns se recusavam, por exemplo, em algumas situações, a adotarem rituais cívicos que não foram criados por eles, a obedecerem rigorosamente à lei oficial se ela não fosse baseada nos usos e costumes antigos. Passo agora a resenhar o capítulo “A venda das esposas” que pontua com exemplaridade a pesquisa dos costumes populares empreendida por Thompson.

Até pouco tempo atrás a memória histórica da venda das esposas sofria de amnésia. Afinal, por que dar atenção para um costume que ataca o sagrado matrimônio cristão? Pior ainda se ele não vem dos países abaixo da linha do equador (onde não existe pecado). No século 19, o evento era categorizado pelos jornais e pesquisas científicas como barbárie e atraso das comunidades rurais, ou, no caso dos folcloristas, diziam que eram resquícios da cultura pagã. Claro, pois na cultura cristã não existem hábitos e rituais esdrúxulos! Não, não. Ninguém, por exemplo, fica ajoelhado, de olhos fechados, segurando um colar e emitindo sons estranhos embaixo de uma imagem ou escultura feita de madeira ou de pedra. Na cultura ocidental ninguém perde seu precioso tempo em frente a um tubo que emite imagens com movimento ilusório e às vezes chora ou nem dorme a noite de tanta aflição, mesmo sabendo que tudo não passa de uma mentira. Ironias a parte, a atribuição do costume da venda das esposas às comunidades rurais ou à cultura pagã era um recurso usado para afirmar a superioridade da civilização na Inglaterra. Porém, os franceses não perdiam tempo e faziam chacota com o costume dos ingleses: “John Bull era representado, de botas e esporas, no mercado de Smithfield, gritando ‘minha mulher por quinze libras’, enquanto a senhora, presa por uma corda, se mantinha de pé num pequeno cercado’” (THOMPSON, 1998, p. 305).

Nos romances literários que expuseram essa prática social era reafirmada a opinião de que a mulher era tratada como um artigo, uma mercadoria, no máximo como um cavalo de um cigano negociador (pleonasmo). Tanto na literatura, quanto nos jornais e pesquisas, a venda era entendida ou porque o marido queria ver-se livre da mulher ou porque ele queria dinheiro. Thompson adverte que esse tipo de opinião desautoriza o exame sério e a capacidade de compreensão do simbolismo desse ritual para além da opressão feminina ou da leviandade dos pobres em relação ao casamento. O autor defende que a prática deve ser vista como “o divórcio popular britânico”.

Antes de entendermos por que Thompson compreende a prática desta maneira vamos aos detalhes da pesquisa. O historiador recolheu cerca de 300 casos noticiados pelos jornais The Times e Notes and Queries, e por folcloristas, num recorte temporal que vai de 1760 a 1880. Essa quantidade é imprecisa, pois para que estes eventos fossem relatados pelo folclorista alguma curiosidade lhe chamara atenção. Além disso, o assunto só se tornou tema de reportagem e comentários freqüentes no início do século 19. Isso não quer dizer que ele não acontecia antes, mas é uma evidência da mudança na consciência social e nos padrões morais demonstrado pelo valor das notícias. Esse aspecto em si é mais importante que as quantificações. Thompson argumenta que a distância entre as classes sociais ou a indiferença de um costume corriqueiro são hipóteses que poderiam explicar o porquê dos acontecimentos não serem registrados anteriormente. A partir do século 19, a desaprovação moral e o escândalo público, a comparação com a venda de escravos na África e a vergonha para a civilização deram o tom dos comentários que denotam uma transformação cultural na sociedade operada pelo crescimento evangélico. Crescem ações de magistrados, policiais, funcionários do mercado e moralistas contra a venda das esposas. A publicidade acabou expulsando aos poucos a prática das praças de mercado, mas isso não significa que tenha suprimido-a. O costume só terminou quando foi desaprovado dentro da própria cultura popular, muito em função das fontes evangélicas, racionalistas, radicais e sindicais.

E. P. Thompson, 1924-1993
A venda das esposas era um costume praticado entre as classes populares, que Thompson acredita ter sido, inventado no final do século 17. Embora seja possível a existência de práticas sociais parecidas em outras regiões e temporalidades, um determinado padrão do ritual só pode ser visto nesse período. Devido às condições materiais da coleta dos documentos mediada pela imprensa ou folcloristas, esse padrão não pode ser entendido como representativo do todo (sendo necessária, para esclarecimento exato, a análise de caso a caso se quisesse compreender as motivações particulares de cada um), contudo ele é desenvolvido através de uma perspectiva de antropologia cultural que considera o fator histórico de mudança no tempo. Esse padrão pode ser divido em dois.

No primeiro modelo, o marido ia até a praça do mercado da vila para tornar público o acontecimento. Exemplo de anúncio: “AVISO: Este é para informar ao público que James Cole está disposto a vender sua mulher em leilão. Ela é uma mulher decente e limpa, com 25 anos. A venda deve ocorrer em New Inn, na próxima quinta-feira, às sete horas”. A esposa era conduzida até a praça do mercado com uma corda amarrada no pescoço ou na cintura. Alguém narrava o leilão, na maior parte das vezes o próprio marido que, por sua vez, segurava a corda que atava a mulher. No segundo modelo, era feito um contrato prévio, e o ritual de “entrega” da esposa ocorria em um bar diante de testemunhas que validavam o ato. Acredita-se que a segunda maneira se tornou mais recorrente após começarem a perseguição contra a venda das esposas na praça do mercado, considerada a verdadeira forma ritual.

Existem alguns aspectos que marcam quase todos os casos da venda de esposas. A) consentimento das três partes: marido, esposa e comprador. Geralmente a mulher entrava em acordo com o marido sobre a venda antes dela se efetivar, caso isso não acontecesse o evento em praça pública possibilitava ela de recusar a sua venda e mesmo o comprador. Nos documentos existem registros dessa situação em que a esposa mesmo tendo sido vendida não aceitou o novo marido, a “negociação” foi cancelada e ela voltou a morar com os pais. B) o ritual sempre exigia dinheiro, que na maioria dos casos era uma pequena quantia (um xelim ou menos era a média). O comprador comumente pagava litros de cerveja ou de ponche ao marido e devolvia-lhe uma fração de grana, chamado “dinheiro da sorte”. Em alguns casos o marido dava presentes ao novo casal, como a parte de um carneiro ou até uma carruagem. Houve um caso extremo em que o cara vendeu sua mulher por um copo de cerveja. Ao que tudo indica, ela adorou o novo marido e saiu insultando o antigo. C) a venda devia ocorrer num local de comércio conhecido aos olhos da comunidade. Ali, o marido podia expressar os motivos pelos quais estava vendendo a mulher ou ressaltar qualidades dela para atrair um comprador. D) a presença da corda era essencial para legitimar o fato. O momento de entrega real da corda às vezes era solenizado pela troca de juramentos análogos como numa cerimônia de casamento. Dependendo do clima e da boa vontade, a cerimônia podia se estender depois da troca. Os três, acompanhados de testemunhas, podiam ir a taverna assinar documentos (como certidões de casamento) e beber juntos.

Thompson salienta que apesar da situação acontecer num mercado de gado, o ritual não deve ser compreendido desta maneira, porém como um divórcio popular seguido de casamento. Caso contrário não haveria a necessidade do simbolismo em praça pública e do consentimento dos três. Algumas evidências apontam que boa parte das vendas das esposas eram apenas a formalização de uma situação já vivenciada, na qual a mulher tinha um amante (ocorrência freqüente) ou até mesmo morava na casa de outro homem (fato raro). Neste sentido, o leilão podia ser somente uma simulação na qual quem aparecia para comprar a esposa era seu amante – tudo já estava combinado previamente. O marido podia expor sua situação ao público inclusive com comicidade a si mesmo dizendo: “bem, vocês estão cansados de saber que não tem mais jeito, então...” Ou praguejando a mulher por seus defeitos – como um cara que dissera que venderia sua mulher por ela ter uma língua afiada e lhe incomodar o dia todo. Numa sociedade que não aceitava o adultério, o público reagia de diferentes maneiras. Vaiando a esposa ou o marido, aplaudindo o ato, protegendo o acontecimento quando autoridades intervinham. Contudo, sem dúvida tanto marido como esposa expunha publicamente sua humilhação frente às pessoas. O que reforça o argumento de Thompson que não se tratava de um comércio da maneira como entendemos hoje.

Câmara dos Lordes, atualmente
Por que essa prática acontecia? Thompson crê que seja por causa do colapso do casamento na sociedade moderna. Por sua vez, não existia divórcio para o povo inglês ou galês. Quando aconteciam era à surdina, só que a tradição consuetudinária da Inglaterra fazia com o novo casal se sentisse envergonhado aos olhos de parentes e vizinhos. Por ora, Thompson elenca os pontos necessários para que houvesse possibilidade da venda das esposas: “o declínio da vigilância punitiva da Igreja e seus tribunais sobre conduta sexual; o consentimento da comunidade e uma certa autonomia da cultura plebéia em relação a culta; uma autoridade civil distanciada, desatenta ou tolerante” (THOMPSON, 1998, p. 334). Tais condições históricas existiam no século 17, onde o costume fincou raízes. Não havia uma maneira de fazer isso conforme a lei oficial da Inglaterra? Sim, recorrendo à Câmara dos Lordes e pagando uma quantia muito alta. Coisa que a classe popular pouco sabia a respeito, tampouco dispunha de dinheiro para tal. Aqui o choque entre as duas culturas, da elite e popular, se evidencia. Os pobres reconheciam os costumes e a opinião da comunidade mais do que um documento protocolado por autoridades.

No final do capítulo Thompson escreve com tom pesaroso sobre a recepção de sua pesquisa pelas feministas. Inclusive recebendo intimidações em determinados eventos. Ele diz que é um preço justo a se pagar por um momento de efervescência da pesquisa sobre a história das mulheres, manifestando que não nega além da opressão de classe, a opressão de gênero. Entretanto, deixa claro que não quis reduzir a venda das esposas simplesmente a opressão masculina numa sociedade patriarcal. O autor desconfia do estereótipo construído em determinadas pesquisas que analisam as mulheres como vítimas e sujeitos passivos da história. Pois, mesmo que isso tenha um tom de verdade, a demonstração do consentimento das esposas (às vezes sugerindo sua venda na tentativa de fugir de um casamento fracassado, de encontrar um parceiro melhor ou simplesmente se ver livre do marido – como quando a compra era realizada pela própria família da esposa) confirma que esse estereótipo não se encaixava em sua pesquisa.

Referências:

THOMPSON, E. P. A venda das esposas. In:______. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 305-352.
THOMPSON, E. P. Introdução: costume e cultura. In:______. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 13-24.

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