quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Sim, sou anarquista e banqueiro”: coisas de Fernando Pessoa

É isso mesmo, pessoal! Não se trata de um banco de créditos ou um fundo de arrecadações para o provimento de operários durante greve ou movimento social. Trata-se de um anarquista que é dono de banco nos moldes do capitalismo, com direito a “açambarcamentos, sofismas financeiros e concorrência desleal”, segundo o próprio. História fictícia? Sem dúvida. Mas que não deixa de levantar questões interessantes para aqueles que se interessam, em alguma medida, pelo anarquismo.

O banqueiro anarquista foi publicado originalmente numa revista de Lisboa, nos idos de 1922. São cerca de quarenta páginas nas quais o poeta português Fernando Pessoa destila toda sua ironia num show de retórica e (também) de sofismo. O diálogo se passa num café, local comum na Europa para discussão de ideias e panfletagem política desde o século 18(?). O interlocutor-narrador pergunta para o banqueiro se era verídico o boato que afirmava que ele já foi anarquista. Então ele responde prontamente que não só é verdade, como continua sendo anarquista. Aí o debate começa. E as gargalhadas do leitor de Fernando Pessoa também... Devido à densidade do diálogo, vou descrever e comentar de modo sucinto somente alguns pontos que me chamaram atenção no texto.

O primeiro ponto que aparece é a questão da teoria/prática. De cara o interlocutor pressupõe que o banqueiro é anarquista somente em teoria, mas que não pratica o que acredita. Logo este trata de negar isso, dizendo que é anarquista em teoria e prática, aliás, seu anarquismo seria mais prático e verdadeiro do que daqueles anarquistas dos sindicatos, dos movimentos operários e das bombas. Assim, o banqueiro responde: “Você me comparou a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que sou diferente dele. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o verdadeiro anarquista. Eles – os dos sindicatos e das bombas (eu também lá estive e saí de lá exatamente pelo meu verdadeiro anarquismo) – são o lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária” (PESSOA, 2009, p. 05-06). Então, o outro pergunta como ele faz para conciliar teoria e prática, já que é um banqueiro. Tenho certeza que vocês estão loucos para saber. Mas se acalmem, porque a resposta do banqueiro depende de uma longa explicação fundamentada nas experiências de vida que ele teve. Estas formaram os “silogismos retóricos” que justificarão a conclusão final.

O banqueiro explica que nasceu pobre, foi operário e não herdou nem um tostão. Mas recebeu dons naturais: a inteligência e a vontade. Como inteligente que era, procurava trabalhar o mínimo possível, instruir-se e ler bastante, inclusive panfletos libertários. A partir de um dado momento, começou a refletir sobre as condições sociais, se revoltou com estas e se tornou anarquista aos 21 anos. “Como eu era lúcido por natureza, me tornei um anarquista consciente. [...] Ora, o que é um anarquista? É um revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente – no fundo é só isto”, conta (p. 07). Daí surge a revolta contra as convenções ou ficções sociais que tornam possível essa desigualdade. A família, no caso da herança, da condição de marido/esposa, etc.; o capital; o Estado; as religiões; e as nacionalidades, são algumas das ficções sociais que causam injustiça social e dominação. Já as injustiças da natureza ele diz não poder evitar: “Aceito – não tenho mesmo outro remédio – que um homem seja superior a mim porque a natureza lhe deu – o talento, a força, a energia; não aceito que ele seja superior por qualidades postiças, com o que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceu por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora – a riqueza, a posição social, a vida facilitada, etc.” (p. 08).

Mas passemos adiante na explicação do banqueiro, que agora pretende expor sobre o melhor jeito de realizar o anarquismo. Ele investiga o processo por via material através de um Estado de transição, ou “ditadura revolucionária”, e chega à conclusão que isto seria um absurdo ou um desastre; já que por mais que os ideais de liberdade sejam pregados, o Estado de transição, feito de maneira autoritária, violenta ou despótica, gerará futuramente não uma sociedade livre, como se quis, porém uma sociedade nos moldes do próprio Estado de transição, dando como exemplo o Império Romano militarizado, a França depois da revolução de 1789 e uma previsão do mesmo com a União Soviética (na mosca!). Então ele chega num esquema. O fim: sociedade livre. O meio: sem transição. Por isso, o processo deve ser mental e não material, quer dizer, feito pela propaganda, ação-direta e indireta, exemplo, motivação e disseminação de ideias para amadurecer e preparar a sociedade para viver livre. O banqueiro conclui que, “se isto não pode se realizar assim, é que o anarquismo é irrealizável, e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa a sociedade burguesa” (p. 14). Só uma revolução social animada pela via mental poderia desfazer essa série de ficções sociais, ao mesmo tempo, em que mostraria uma sociedade preparada para viver em liberdade.

F. Pessoa (1888-1935)
A partir de então, o banqueiro começou a pensar o que podia fazer para alcançar sua liberdade e a dos outros, algo que preparasse a sociedade para o futuro. Mas trabalhar para quem? Ele se pergunta. Já que não era cristão, pois é impossível ser cristão e anarquista, tendo em vista que o cristão aceita (ou resigna) as desigualdades sociais e o sofrimento terreno (passageiro) porque o que importa é uma vida no paraíso após a morte, e o cristianismo é uma ficção social, então porque trabalhar para os outros? Daqui segue-se uma passagem das mais interessantes e cômicas do texto.

O banqueiro diz: “Vieram-me momentos de descrença; e você compreende que era justificada... Sou materialista, pensava eu; não tenho mais vida que esta; para quê hei de ralar-me com propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só uma vida, que não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe ao estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao dinheiro porque ele não é natural, a todas as ficções sociais porque elas não são naturais, porque cargas de água é que defende o altruísmo e o sacrifício pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário é portanto exclusivamente egoísta” (PESSOA, 2009, p. 18).

Mesmo com toda a série de contestações à lógica do anarquismo, ainda sem ter a certeza de que o futuro corresponderia às expectativas almejadas pelos anarquistas e sacrificando todos os benefícios pessoais em prol dos demais, o banqueiro continuou na luta, fazendo divulgação e propaganda dos ideais. No entanto, ele percebeu que no grupo de seus companheiros libertários foi se criando uma tirania interna. Ocasionalmente um mandava e o outro obedecia, e quase nunca era pela razão. Isso se tornou preocupante, pois nesse caso não era uma tirania de uma ficção social que já existia, porém uma nova tirania social criada dentro de um conjunto de pessoas que propunha a liberdade.  Além desta, outro tipo de tirania dava as caras também: a tirania do auxílio. Sim, o altruísmo, a ajuda ao outro, se tratava na verdade de uma tirania a partir da arrogância. Porque “auxiliar alguém, meu amigo, é tomar por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou fazê-lo tal, ou supô-lo, isto é, no primeiro caso, uma tirania, e no segundo caso parte-se, pelo menos, inconscientemente, do princípio de que outrem é desprezível e indigno ou incapaz de liberdade” (p. 24). Que problema sério colocado! A questão se desdobra em duas: da servidão voluntária daquele que espera sempre o outro fazer por ele; ou da tirania brotada da arrogância de supor ser mais capaz/melhor que o outro, mostrando o caminho correto no qual esse deve seguir, mais ou menos assim como as vanguardas revolucionárias fazem, sejam no comunismo ou no anarquismo. Afinal, eles são os sábios/conscientes e o(s) povo(s) são os burros/alienados!

A sobreposição de uns pelos outros se dava conforme o grau das qualidades naturais de cada um, pela inteligência, imaginação ou vontade. Entretanto, de onde a tirania, através do uso dessas faculdades naturais, provinha? O banqueiro então levanta duas hipóteses. Pode ser que o homem seja naturalmente mau. Ou então essa tirania é uma perversão adquirida pelo homem a partir de uma sociedade recheada por ficções sociais que o oprime e o enrijece. Por sua vez, a humanidade, enquanto criadora de tiranias, propicia que o homem faça uso de suas faculdades naturais de maneira tirânica. A primeira hipótese é impossível de ser resolvida pela ciência, pois teríamos que voltar a um lugar muito distante na história onde o homem vivesse de modo totalmente natural. Pela mais provável, a segunda assertiva é mais verossímil, já que todos os registros de sociedades passadas mostram existência de opressão e de tirania, quase sempre atreladas às ficções sociais. A partir desse ponto do diálogo, ele usa um sofismo, porque parte de uma afirmação imprecisa para extrair uma conclusão precisa e objetiva. Qual é esta?

Num estado social em que vivemos não é possível trabalharmos juntos sem criarmos uma tirania social entre si. Portanto, resta para todos os anarquistas trabalharem para o mesmo fim, porém separados. Deste modo, ninguém vai tiranizar ninguém, todos trabalharão para a liberdade sem criarem uma nova tirania social além das ficções sociais já existentes. Esse deve ser o trabalho dos anarquistas na preparação para a revolução social, conclui o banqueiro. Entretanto, nenhum dos camaradas de luta aceitou essa condição, aliás, chegou a sair nos socos com alguns, conta. O banqueiro conclui, portanto, que seus camaradas de movimento eram uns covardes e parasitas, pois queriam que os outros dessem a liberdade para eles, só que isso é impossível se não for por meio da “tirania do auxílio”; conclui-se que a liberdade não pode ser outorgada ou conferida, mas precisa ser conquistada – assim como já havia escrito Max Stirner. Por fim, o banqueiro diz que se seus colegas não querem ser anarquistas. Então ele o será, conquistando sua própria liberdade.

Para conquistar a liberdade é preciso atacar as ficções sociais, superando-as ou suprimindo-as. E aqui começa sua justificação final de como é possível ser anarquista e banqueiro ao mesmo tempo. Ele faz as seguintes ponderações: qual é a ficção social mais importante atualmente? O dinheiro. Como subjugar a força ou a tirania do dinheiro? “Tornando-se livre da sua influência ou da sua força, reduzindo sua atividade no que dizia respeito de mim”, pontua. Pois é o máximo que o indivíduo pode fazer, já que a destruição completa do dinheiro só é possível pela revolução social. Como combater o dinheiro? O processo mais simples era ir para o campo ou bosque, comer raízes, andar nu e viver como um animal. Bom, mas isso não é um combate, isso é uma fuga das ficções sociais! Por isso, a saída para travar o combate indo ao encontro do inimigo é adquirindo cada vez mais dinheiro. Assim, conforme a quantia aumentar menor será a influência do dinheiro. É aí que o personagem conta que entrou numa “fase comercial e bancária do (seu) anarquismo”.

No entanto, o interlocutor objeta dizendo que ele fez o contrário do anarquismo e criou uma tirania, a tirania do capital. Ele justifica dizendo que esta tirania já existia e todos já estão acostumados com ela (embora não seja o ideal). O problema é quando se cria uma nova tirania em que as pessoas não estão acostumadas, ainda mais quando se defende a liberdade e gera o autoritarismo. Novamente o interlocutor contraria o banqueiro; vejamos a passagem:

Interlocutor: O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para si, mas também para os outros... Parece-me que quer a liberdade para a humanidade inteira...

Banqueiro: Sem dúvida. Mas eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único processo anarquista, cada um tem de libertar-se a si próprio. Eu libertei-me a mim; fiz o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que teria sido o crime, se eu os tivesse impedido. [...] Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é também contra os meus princípios. [...]

Interlocutor: Mas esses homens não fizeram o que você fez, naturalmente, porque eram menos inteligentes que você, ou menos fortes de vontade, ou...

Banqueiro: Ah, meu amigo: essas são já as desigualdades naturais, e não sociais... Com essas é que o anarquismo não tem nada.

***

Pitacos safados!

O banqueiro de Fernando Pessoa, embora faça um raciocínio filosófico mais com intuito provocativo, usando figuras de linguagens e prerrogativas pouco precisas, adota uma descrição bastante verossímil do anarquismo, todavia seus argumentos possuem algumas incongruências em relação aos filósofos anarquistas. Proudhon (1975), por exemplo, tentou explicar como era possível “neutralizar” a desigualdades das faculdades naturais por meio do mutualismo e da criação de laços fraternais e racionais entre os cidadãos. Mas esta é uma discussão recorrente nos outros autores, cada um tentando resolver da sua maneira; porém nunca a aceitando como uma condição-limite.

(Alemanha, 1806-56)
Para além das brincadeiras e ironias, não há dúvidas que a filosofia anarquista contém uma série de contradições, especialmente se tentarmos compor um corpo mais ou menos coeso dos autores, concepções e práticas. Algumas das contradições aparecem na lógica do personagem de Pessoa. Nesse sentido, o raciocínio do banqueiro joga o anarquismo contra ele mesmo, através de argumentos muito parecidos com os quais Max Stirner (2009) utilizou em 1844 para atacar não só o Estado e a religião, mas também o cientificismo, o socialismo e o liberalismo atravessados e fundamentados por conceitos metafísicos como a humanidade, o homem, o trabalhador, o burguês – tudo isto para o autor é uma “alienação” do único, do indizível, do egoísta, do eu. Contudo, penso que Stirner nunca fora anarquista ou, pelo menos, fuja da concepção de anarquismo dos filósofos clássicos. Sobretudo, porque o anarquismo de Proudhon e Bakunin, por exemplo, nunca negou totalmente a moralidade, tampouco a ética colada à moral enquanto conjunto de regras ou preceitos partilhados numa dada comunidade, mesmo que seja diferente da sociedade vigente em que viveram (embora eu acredite que nem assim estejam tão distantes). Ouso afirmar, que o anarquismo não se resolve simplesmente por uma questão racional ou lógica levada ao extremo, como fizeram o banqueiro de Pessoa e Stirner, mas passa por uma prerrogativa de “acreditar em algo” para além do que é totalmente coerente e não-contraditório, e seja completamente explicável ou lógico. Uma fé? Sim, uma fé.


Referências:

PESSOA, Fernando. O banqueiro anarquista. [Lisboa]: CNT – A Corunha, 2009 [1922].
PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Lisboa: Editorial Estampa, 1975 [1840].
STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1844].

Link do livro em pdf: O banqueiro anarquista.


domingo, 25 de novembro de 2012

A literatura (des)norteadora: regime estético em Rancière

Esse texto descreve o modo desafiador como o conceito de literatura é compreendido pelo filósofo Jacques Rancière, no livro Políticas da Escrita. Na modernidade, houve um deslizamento histórico do (sentido do) conceito de literatura, que passou do “saber”, quer dizer, do domínio específico de regras disciplinares de construção textual, à arte, em seu regime estético (já explicado no texto O fim e a forma).

Até no século 18, existia um saber das letras dotado de (três) regras particulares de composição textual baseadas na tradição poética de narrativa descrita por Aristóteles: o pensamento que determina o tema (diánoia); a elocução, retórica ou fala (léxis); e a disposição das partes, arranjo ou esquema (táxis). Reparem que as palavras entre parênteses são gregas e estão presentes em alguns radicais da língua portuguesa, por exemplo, taxonomia, que é a disciplina da biologia que define os grupos onde os organismos vivos estão classificados. Portanto, no caso da poética, é um domínio de regras que classifica e hierarquiza as partes de um texto, ordenando seu formato para transmitir uma determinada “mensagem” encaminhada pela elocução e retórica. A retórica, por sua vez, é a arte da persuadir o leitor/espectador sobre um tema específico – escolhido previamente pelo pensamento, contudo fundamentado numa importância para a comunidade ou para o público ao qual se destina.

Já no século 19, ao invés do conceito de literatura designar um saber, passará a denotar um objeto. Sendo, a partir de então, a atividade daquele que escreve. A mudança de significante (ou referente – aquilo “para fora” que o significado aponta) passou despercebida e sob essa historicidade, a literatura começou a englobar as artes das línguas antigas, os textos sagrados, os saberes retóricos, até os romances modernos, atravessados pelos grandes gêneros poéticos – trágico, épico e lírico.

Rancière (Argélia, 1940)
Entretanto, para Rancière a literatura não se refere a este conjunto de obras tão distintas, pois ela não é o que sucede as belas-artes (da poética, da retórica, da gramática), porém ela é o que suprime as belas-artes, desnorteando seus saberes disciplinares. “Há literatura quando os gêneros poéticos e as artes poéticas cedem lugar ao ato indiferenciado e à arte sempre singular do escrever”, aponta Rancière (1995, p. 26). A literatura é uma experiência e uma prática autônomas da linguagem – por exemplo, através da poesia lírica e do romance, que são marginais da grande poesia épica e dramática, e da eloqüência. Ela se constitui como um modo do discurso no qual é a própria realidade que existe, ‘sozinha com exceção de tudo’, como na escrita de Mallarmé. Quer dizer que, a literatura não precisa de “um fora”, de uma realidade pré-textual que lhe sirva de conexão e explique a transmissão de suas mensagens, pois não há uma organização formal, nem o domínio de uma técnica que concatene as partes e os argumentos para persuadir os leitores. A leitura da literatura pressupõe um mergulho num mundo próprio, que não tem relação direta com o exterior. É como se um sonho fosse a própria realidade e dentro dele as coisas teriam leis físicas de possibilidade e sentidos “lógicos” totalmente diferentes do estado de “vigília” (quando “sabemos” estar acordados). Ao mesmo tempo, a literatura engendra o embaraço ou a desestabilidade da linha que divide o sonho da realidade, pois mostra que não há uma fronteira onde termina o real e começa a ficção, mas que o primeiro é construído ao apoiar-se em elementos do último. Um exemplo seminal (já no século 16) de literatura é Dom Quixote de Cervantes. Ao tomar contato com os romances de cavalaria, o personagem principal “acredita” que eles são historicamente verdadeiros e possíveis, e começa a viver “aquela realidade escrita”.

Aristóteles (Atenas, 332 a.C.)
Embora a literatura marque a ruptura às belas artes, ela administra a ilusão da continuidade ou da identidade das duas como uma só, pois permite a coexistência de coisas contrária a ela própria em seu interior, como as práticas da poética. Em todo caso, poderíamos adequar o nome literatura a esse conjunto de textos compostos por regras distintas, relativizando seus significados, pluralizando-os, todavia isso faria escapar a questão central colocada pela própria literatura, que é a desestabilização à ordem das classificações entre os modos e os gêneros do discurso; tendo em vista que, a “literatura” resiste à redução nominalista e desmancha as relações estáveis entre nomes, ideias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os modos do discurso tradicionais e reconhecidos (p. 27). Se tomarmos a linguagem como um conjunto de regras específicas de significados e significantes que formam imagens mais ou menos exatas, e que existe um modelo de hierarquização entre os gêneros discursivos, então podemos dizer que a literatura (com limiar na modernidade) é uma guerra da escrita contra a própria linguagem. Assim, “o ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos” (p. 28-29).

Referência:

RANCIÈRE, Jacques. A literatura impensável. In:______. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1995, p. 25-45.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Esperando Foucault, também

“Don’t be Saussure”. Don’t be so sure!
(Marshall Sahlins)


Foucault é um filósofo que trouxe e possibilitou inúmeras discussões sobre oficio do historiador. Embora o autor provavelmente não quisesse fazer uma escola ou uma corrente de pensamento historiográfico – aliás, muito pelo contrário, ansiava desestabilizar as maneiras através das quais a história vinha sendo pensada e escrita –, podemos dizer que suas contribuições acabaram sendo absorvidas de maneira resiliente pelo saber histórico. Uma das áreas que utilizam as argüições de Foucault, nem sempre da forma mais honesta, é a história da cultura ou “nova” história cultural. Para descrever o processo que abriu espaço para o surgimento da história cultural e o movimento de inserção do pensamento foucaultiano nesse ramo, vou resenhar passagens do texto da historiadora estadunidense Lynn Hunt, introdução ao livro que ela própria organizou e que apresenta autores e concepções da nova história cultural.

No início de seu texto, a autora aponta o entrelaçamento da história com a sociologia, a partir do século 20, demonstrado no “texto-manifesto” do historiador Edward H. Carr, que defendia a integração da sociologia a história. Desde então, a sociologia histórica cresceu como ramo importante da Sociologia e a história social destronou a história política. Segundo Hunt, isso se deveu, sobretudo por causa de dois paradigmas da História, o marxismo e a Escola dos Annales. A história social marxista se firmou a partir dos anos 60 e 70 com a versão chamada de “história vista de baixo”, uma contraposição a antiga história política dos reis e heróis, como também ao marxismo ortodoxo que tinha nos líderes políticos os protagonistas da narrativa. Georges Rudé, Albert Soboul e Edward Thompson voltaram seus olhares para a composição social da vida cotidiana de operários, criados, mulheres, grupos étnicos e congêneres (HUNT, 1992, p. 2). Já a Escola dos Annales destacou o social e o econômico como os níveis da realidade histórica que realmente importam. Braudel, na segunda geração desses historiadores, definiu e hierarquizou as temporalidades em três. A longa duração (estrutura), a média duração (conjuntura) e os “eventos passageiros”; os dois primeiros ligados ao social, ao econômico e ao geo-histórico; e o último ligado à política e ao indivíduo, seriam apenas espumas ou poeiras trazidas à praia pelas ondas do mar da história (geológico e sócio-econômico).

Lynn Hunt (1945)
No entanto, a história social começou a perder terreno a partir da incorporação da noção de cultura numa perspectiva antropológica. Thompson foi o maior exemplo dentro do marxismo, entretanto esse autor não rejeitou totalmente o “jogo” marxista entre “base e superestrutura”, ao contrário do que escreveu Hunt, porém manipulou de maneira mais complexa a dinâmica humana na relação entre economia e cultura. Ainda dentro do paradigma dos Annales a cultura galgou espaço (na terceira geração) através do conceito de mentalidades (também trazida da antropologia), todavia, Chartier e Revel, historiadores da quarta geração, recusaram a concepção dos Annales que compreende as “mentalidades” como aspectos do terceiro nível, ou seja, que estão na “superfície do mar” e são determinadas pelas “correntes profundas” da história social e econômica. Segundo esses autores, “as relações econômicas e sociais não são anteriores às culturais, nem as determinam; elas próprias são campos de prática cultural e produção cultural – o que não pode ser dedutivamente explicado por referências a uma dimensão extracultural da experiência” (HUNT, 1992, p. 09).

De acordo com Lynn Hunt, Chartier e Revel acompanham as intervenções de Foucault à história social: “a loucura, a medicina, o Estado, não são naturais, são objetos historicamente constituídos por práticas discursivas, sujeitas a mudanças, descontínuas e não se adaptam a base transcendental para o método histórico” (1992, p. 10). [Até aqui apenas resenhei a início do texto de Hunt, passo agora as minhas considerações e diálogos com outros autores] Acredito que o postulado direcionado coerentemente a Foucault, exposto acima por Hunt, possibilita que o historiador deixe de pensar sua cultura ou sua prática científica acima das demais e fora de um lugar especial de onde observa os “ignorantes de carne e osso”. Quer dizer, é uma renúncia a Hegel – como quer Chartier (1990) – e à cultura da maneira como ela é pensada pela antropologia que atravessou Malinowski, Durkheim, Lévy-Bruhl, história das mentalidades, Clifford Geertz e todos aqueles que se achavam capazes de descrever os comportamentos, hábitos e crenças dos outros (geralmente índios) e dizer quais eram os signos e os sentidos partilhados pela comunidade.

Nessa linha de raciocínio, ainda incipiente na História, o historiador pode questionar sobre si e sua classe, como também sobre as práticas historiográficas, os instrumentos teóricos e conceituais que utiliza para “significar” sua narrativa, não mais como modelos de explicação da realidade melhores e mais evoluídos do que os dos índios – como fizeram, por exemplo, muitos antropólogos e historiadores das mentalidades que retornaram a sociedades antigas e distantes para marcar a alteridade e a superioridade –, mas para compreender que estes elementos e práticas também estão fundamentados numa crença (o saber científico? A cultura ocidental moderna?) e numa “maneira” de partilhar sentidos; porém, que nunca é imóvel, homogênea, linear, consensual.

Basicamente, tal observação permite compreender que, o que o historiador pratica foi fabricado historicamente e é produto dialógico das disputas e condicionamentos sociais. O primeiro passo é parar de se colocar fora da disputa, como um juiz neutro ou como aquele que está isento de tudo que escreve; e começar a olhar a si (e suas práticas) como “sujeito” igualmente inserido num sistema social e não um “sujeito” que paira no ar e que, por isso, consegue analisar os objetos (às vezes, os índios ou os medievais). Talvez seja compreender que ele pode ser um índio ou um medieval, em certa medida, e que nem seu tempo ou sua cultura são superiores. Até que isso seja percebido e refletido, continuarão as críticas de que a História usa ou pretende usar instrumentos meta-históricos. Sobretudo por que, exceto em raros casos, por enquanto não foi desta maneira que os historiadores usaram Foucault. O título de um dos livros do antropólogo Marshall Sahlins é sintomático: “Esperando Foucault, ainda”. Entre muitas ironias e pauladas, Sahlins critica a forma com que os pesquisadores se apropriaram de Foucault (Gramsci e Nietzsche) fazendo quase uma disciplina fechada e à parte, uma espécie estruturalismo do(s) poder(es) sem mudança.

A dificuldade de encaixar a obra de Foucault a qualquer corrente teórica na História acabou possibilitando algumas vinculações forçosas e falsas. Hunt e Peter Burke (1991), por exemplo, o aproximaram da Escola dos Annales. Hunt à “quarta geração” de Chartier e Revel e à primeira e segunda, respectivamente encabeçadas por Bloch-Febvre e Braudel, as duas últimas por que os propósitos, de “encontrar as regras anônimas que governam as práticas coletivas e deslocar o sujeito individual da história”, seriam os mesmos. Parece-me que tem algum fundamento o acordo de ambos quanto a tais formulações, porém é um critério flexível que daria para colocar juntos outros tantos autores distantes nas perspectivas, preocupações e abordagens. Já Burke acredita que Foucault está mais próximo da terceira geração com a história das mentalidades. Aproximação extremamente complicada, pois além de entender as práticas e os costumes num terceiro nível, os historiadores das mentalidades provavelmente recusariam voltar seus métodos contra si mesmos. E como bem observou Hunt (aí eu concordo), Foucault não aceitava a conexão de práticas e mudanças (sociais) aos acontecimentos, entendidos aqui de maneira estrutural da política e da economia.

Marshall Sahlins (EUA, 1930)
Hunt salienta que Foucault influenciou os historiadores culturais pelo prisma das tecnologias de poder inseridas nos discursos, contudo, diz que o problema de endossar os postulados do filósofo é cairmos num niilismo (adjetivo usado de maneira acusatória e pejorativa). A historiadora escreve o seguinte: “onde estaremos quando todas as práticas, sejam elas econômicas, intelectuais, políticas ou sociais, revelarem ser culturalmente condicionadas?” (idem, p. 13). Ora, se elas são condicionadas não significa que não possam ser transformadas, algumas até abolidas e/ou esquecidas. Será que a indagação de Hunt tem a ver com o medo de pensar que as práticas culturais dos historiadores também são condicionadas? Teria relação com o que Sahlins escreveu de maneira irônica: “Pelo menos no que concerne à antropologia, duas coisas são certas a longo prazo: uma delas é que estaremos todos mortos; mas a outra é que estaremos todos errados. Evidentemente uma carreira acadêmica feliz é aquela em que a primeira coisa acontece antes da segunda” (2004, p. 03).

O problema é que Hunt não explica o conceito de niilismo. Mas imagino que ele é usado da mesma maneira como é dirigido aos pós-modernos. Se assim for, então, tem a ver com o seguinte problema: bom, se todas as práticas e os discursos são condicionados pelos dispositivos de poder, e tudo que pensamos e fazemos é previamente fabricado pela linguagem então não nos resta fazer mais nada além de chorar pelas nossas desgraças, já que a vida não tem sentido e não há hierarquia de valores morais e éticos. Talvez esse seja um pensamento tipicamente niilista (ou pós-moderno, como dizem) porque nega a vida, (todos) os valores, os sentidos, as possibilidades, as verdades e até a mudança. Todavia, penso que essa crítica não serve para atacar Foucault, e nem para Nietzsche. Já que eles foram críticos do niilismo, da negação da vida, do enquadramento de todas as pessoas numa única forma de realidade social que almeja ser mais verdadeira que as outras. Humm... então seria a ciência uma espécie de niilismo por defender uma única verdade e negar todas as demais? Para Nietzsche sim, a ciência e o homem matam Deus para ocupar seu lugar. Agora os niilistas “pós-modernos” não aceitam mais ninguém no lugar de Deus, mas choram pelo vazio deixado por ele. Foucault e Nietzsche acreditavam que agora era hora de pararmos de chorar com a morte de Deus e do homem e inventarmos formas próprias de vida sem necessariamente defender uma verdade única. A maneira como os pesquisadores usam Foucault é integrá-lo a um tipo de sistema que já existia antes deste escrever, ou pior, como aponta Sahlins, é tentar defender uma verdade inamovível onde o sistema lingüístico e do mundo está fechado, como Saussure, o estruturalista imaginava.

“Temo que jamais nos livremos de Deus,
 posto que cremos ainda na gramática” (NIETZSCHE, 2001, p. 25).

Foucault, pelo contrário, adverte sobre a disjunção entre as palavras e as coisas. As palavras não são as coisas! Mas as instâncias do poder vinculadas as instituições do saber (como as disciplinas acadêmicas, por exemplo) intentam numa batalha discursiva promover a dobra entre a palavra e a coisa, até que elas colem uma na outra e se torne o “verbo que se fez carne” – “a verdade revelada” por Deus? Ou pelos cientistas-deuses? Diga-se de passagem, uma verdade única, com fins políticos muito claros. “Ah, mas as proposições de Foucault, Deleuze, Rancière e outros geram mais perguntas do que respostas”, dizem. “Que bom!”, eu digo. Onde queremos ir com tantas certezas? Vamos avisar para os índios quem eles são e o que fazem? Ou vamos descobrir o que aconteceu no passado para não repeti-lo e marcharmos para o progresso eterno, como previam os projetos dos historiadores do século 19?

Creio que longe de pensar uma aniquilação das ciências, tampouco da História, Foucault apresentou reflexões valiosas para pensarmos a situação das disciplinas como locus e produtoras de sentido para a vida e a existência – os usos dessas verdades plurais somos nós (os índios) que vamos decidir, negociar, condicionar. O desafio é projetar saberes científicos que não arroguem uma verdade só suas; ou então continuaremos no “niilismo acadêmico” que acreditamos ser praticado pelos outros, pelos diferentes, pelos inferiores (os índios?).

Referências:

BURKE, Peter. A revolução francesa da historiografia: a Escola dos Annales. São Paulo: Unesp, 1991.
CHARTIER, Roger. Renunciar a Hegel. In:______. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
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