sexta-feira, 12 de abril de 2013

Negacionismo e História: o holocausto moral dos relativistas

O que é real? Como você define o "real"? Se você está falando sobre o que você pode sentir, o que você pode cheirar, o que você pode saborear e ver, o real são simplesmente sinais elétricos interpretados pelo seu cérebro.
(Morpheus em Matrix)
 
A partir dos anos 70 surgiram diversos trabalhos abordando a fragilidade epistemológica em que a História se apoia quando pretende encontrar ou construir verdades científicas emitidas através de uma narrativa semelhante a do realismo literário. O apontamento dos limites, ou seja, a crítica ao saber histórico, que passa pela relativização da verdade em relação à linguagem, foi engendrada por pesquisadores de diferentes perspectivas, inspirações e áreas. Passando por cima desta pluralidade, alguns historiadores e colegas vizinhos encontraram uma estratégia para caracterizar o posicionamento destes críticos, chamando-os de pós-modernos: termo que se tornou sinônimo de relativista. Porém, apesar da recusa ao diálogo por parte de determinados historiadores, alguns ao menos tentam responder as críticas. Neste post procuro discutir uma destas respostas que, a meu ver, é ineficiente. Tentarei expor o porquê.

Diferentes historiadores como o francês Pierre Vidal-Naquet (1988) e o italiano Carlo Ginzburg (2002; 2006) argumentam que o relativismo é um dos pressupostos básicos para a negação do Holocausto (o chamado negacionismo/revisionismo). Ou que a corrente relativista contribuiu para o aparecimento na década de 80 de trabalhos de história sobre o Nazismo que negavam o Holocausto. Carlo Ginzburg vai além ao condenar como “irracionalistas” todos os pesquisadores que se inspiram ou dialogam em alguma medida com a filosofia de Nietzsche. Derrida, Paul De Mann, Barthes, Foucault e White seriam então relativistas, niilistas e, por fim, nazistas. Entretanto Ginzburg omite propositalmente o pensamento de Nietzsche como crítico feroz do orgulho nacionalista alemão e do Estado – eixos basilares do Nazismo.[1]

Aqui, através de um argumento moral, historiadores como Vidal-Naquet e Ginzburg tentam matar dois coelhos com uma cajadada só (de Moisés!). Mas o mar vermelho não se abriu quando tentaram integrar numa mesma ilha dois posicionamentos distintos que consideram “inimigos” da História: o relativismo e o negacionismo. Não há resposta, somente uma contraposição que diz: se você é relativista (ou “irracionalista”) logo defenderá o Nazismo e negará o extermínio dos judeus. O argumento neste nível não tem nada de epistemológico como nos escritos em que a Deborah Lipstadt denunciou a adulteração e a fraude de documentos para manipular os eventos históricos feitas por David Irving – um historiador britânico que aderiu com o passar do tempo a organizações neonazistas nos EUA (JIMÉNEZ, 2000).[2]

Judeus em Auschwitz
Em todo caso os negacionistas não defendem a inexistência do Nazismo, nem mesmo que mortes e assassinatos não aconteceram nos campos de concentração. Os argumentos centrais destes são os seguintes: (1ª) não é possível ter ocorrido o extermínio dos judeus (o Holocausto) porque os nazistas não traçaram nenhum plano neste sentido, uma vez que não existe documento algum que detalhe este plano; (2ª) a tecnologia da época não permitia a existência de câmaras de gás que funcionassem como máquinas de morte em massa; (3ª) entre os anos de 1941 a 1945 a população judia manteve-se estável, por isso o número de seis milhões de mortos é falso; (4ª) os judeus sobreviventes mentem para conseguir privilégios financeiros; (5ª) o julgamento ocorrido em Nuremberg após a guerra se apoiava em documentos falsos para condenar o inimigo alemão derrotado (JIMÉNEZ, 2000, p. 378).

Parece bastante claro que estes argumentos não possuem nada de relativistas. Pelo contrário, como já apontara André Voigt (2009), eles partem de um solo comum da chamada linha de investigação da história “realista” ou científica. Quer dizer, no primeiro argumento defende-se que o acontecimento só é possível ou real se existe algum documento que o comprove. É óbvio que eles sabem que muitos arquivos foram aniquilados e que os próprios nazistas usavam termos burocráticos para se referirem ao extermínio em massa (como “solução final”, “questão judia”, “internamento” e etc.).

No segundo argumento reaparece a realidade submetida a uma possibilidade e, neste caso, à (descrição da) época: como se não pudesse existir algo novo e diferente em relação ao que descreveram como a época. O problema é que o discurso histórico, em certa medida, caminha neste mesmo sentido. Acredita-se em demasia nestas descrições generalistas. A chamada contextualização histórico-social às vezes peca por apagar os acontecimentos, as criações, as novidades que não se adaptam a ela em prol de um efeito de realidade ao qual tudo precisa estar ligado para ser verdadeiro. Esse é um modelo discursivo típico do realismo literário que, em reação ao romantismo e influenciado pelo positivismo do século 19, pratica literatura como a escrita que descreve a realidade da época, isto é, dos problemas sociais e políticos. Uma espécie de poética histórica (uma arte) que liga os fatos à necessidade ou a verossimilhança. Misturando personagens fictícios a realidades aceitas socialmente e submetendo o real somente ao possível.

Complementando o que disse acima, ao tecer uma crítica aos Annales, Voigt argumenta que na atualidade determinado modelo historiográfico opõe o acontecimento à noção de mentalidade. Conforme já havia sido exposto por Jacques Rancière, Voigt conclui que esta é uma “maneira de suprimir o acontecimento, neutralizando-o em sua carga de ruptura com uma época na mesma medida em que procura submetê-lo à possibilidade de ter tido condições de existência em seu tempo. O medo do anacronismo acabou submetendo o real ao possível, de acordo com o tempo. Do mesmo modo, esta prática historiadora sempre procura encadear o acontecimento a uma conjuntura necessária, para que possa ser caracterizada como real” (2009, online).[3] Se concordássemos que num período após a Primeira Guerra o mundo inteiro estava falando e pensando em paz, seria difícil situar a possibilidade de existência do horror que foram os campos de concentração e extermínio. Na linha das mentalidades esse acontecimento foi irreal? Talvez por isso os historiadores até hoje sentem dificuldade em representá-lo através de uma narrativa.

Os outros argumentos dos negacionistas ou caminham na mesma direção ou defendem que o Holocausto não passa de uma maquinação política empreendida por um complô contra os alemães derrotados na II Guerra Mundial. Argumento este bastante usado pela historiografia dos oprimidos e dos “dominados” quando se pretende relativizar os documentos oficiais. Ok, isto pouco importa neste momento. O que gostaria de destacar é que os “negacionistas” ou “revisionistas” não relativizam coisa alguma. Pelo contrário, os verbos-chaves usados são os mesmos de um historiador não-negacionista cuja pretensão é buscar ou construir verdades: “evidenciar”, “demonstrar”, “revelar”, “confirmar”, “comprovar” e similares. Ou seja, em tese, eles se dão por satisfeitos quando tais documentos comprobatórios existem: a verdade se revela neles. É o chamado “verbo que se fez carne”, muito caro à tradição judaico-cristã. Estes argumentos podem ser perigosos, pois já imaginaram se acaso aconteça algo que não tenha produzido documentos para comprovar que aquilo realmente aconteceu?

Voigt (2009) considera que na ausência de conseguir dar uma resposta satisfatória aos negacionistas, os historiadores asseveraram que a História era assim um artifício para assegurar a memória. Um uso político e moral da memória. A memória como dever. E, neste caso, mais uma vez existe uma luta contra Nietzsche por causa da apologia que o filósofo fez ao esquecimento. Por tabela a crítica ou a acusação de compactuar com o esquecimento do nazismo se estende a todos aqueles considerados relativistas, irracionalistas, pós-modernos, pós-estruturalistas, desconstrucionistas, contorcionistas e demais “istas” que inventaram... Mas novamente se enganam ao acreditarem que o esquecimento filosófico de Nietzsche tem a ver com o esquecimento do Holocausto. Primeiro que os negacionistas não pregam o esquecimento. Eles não dizem: “vamos esquecer o que aconteceu e seguir em frente, pois só o presente nos interessa agora”. Nada disso! Eles querem é construir uma nova memória do Nazismo e da II Guerra advogando sobre a inexistência do Holocausto. Eis a verdade deles! E querem universalizá-la a todos, instaurando-a e consentindo-a hegemonicamente.

Em A genealogia da moral Nietzsche apresenta o esquecimento não como uma passividade. Algo que seria secundário em relação à memória, sua inoperação ou ausência de memória. Mas como uma atividade. Uma positividade. O filósofo compara o esquecimento à digestão. O homem que não consegue esquecer é identificado como um enfermo cuja doença o impede de digerir os alimentos. Só o esquecimento poderá dar esperança e felicidade. Enquanto isso o memorioso, como não consegue se livrar de nada, nunca fica pronto para o novo ou para o presente. Ademais, a reflexão de Nietzsche proporciona um outro olhar para a noção de memória. Quando o esquecimento for uma faculdade que antecipa a inscrição da memória, inibindo a fixação desta sem a sua vontade, “a memória não será entendida mais como uma prisão a marcas de um passado inexorável” do qual não se pode mais se livrar, porém uma impressão da qual não quer mais se livrar (FERRAZ, 1999, p. 35). A memória deixa finalmente de ser um dever e passa a ser um querer. Uma memória para o futuro! Uma promessa da qual se quer cumprir. Assim, lembrar passa a ser um continuar querendo o já querido, uma memória da vontade proporcionada por um esquecimento ativo e criador.

Outra confusão “ingênua” (para não chamar de desonestidade intelectual) é a que descreve como irracionalismo o posicionamento de intelectuais que dialogam com Nietzsche. Ora, não há uma rejeição da razão por parte destes filósofos, historiadores, sociólogos e teóricos literários que gostam da filosofia nietzschiana. Longe disso, eu penso. Há um uso do intelecto para criticar e suspeitar da própria razão. Para desconfiar da fé cega na razão, especialmente a instrumental, utiliza-se a razão autocrítica. Este exercício é desenvolvido há bastante tempo desde Kant, passando por Marx, Freud e Escola de Frankfurt. O que Nietzsche e os outros pensadores fazem é colocar uma suspeita sobre a razão utilizando-se dela mesma. Ou vocês acham que este exercício do pensamento é possível por qual meio? Nietzsche coloca inclusive o próprio relativismo em suspeita.[4] É um eterno “não acredito em nada além daquilo que duvido” -- como já cantou Renato Russo (1991).

Ainda assim, colegas anarquistas e monarquistas me disseram que o relativismo nos levaria a um fascismo tal qual o Nazismo. Eu nem me considero um relativista sob todos os aspectos, mas defendo que é seu “oposto” que formou a condição de possibilidade do Nazismo acontecer: a crença cega. Se o relativismo fosse um fenômeno de percepção mais ou menos geral entre a população e os líderes alemães, o Nazismo ou algo similar não teria ocorrido. Provavelmente eles desconfiariam com veemência da identidade alemã, da ideia de que os povos germânicos ou arianos descendiam de uma raça pura ou que eram escolhidos pelos deuses ou coisa assim. Desconfiariam também das pesquisas científicas nazistas que "comprovavam" que judeus, negros, ciganos e outros eram inferiores aos alemães com pedigree. A galera que diz que não sabia de nada desconfiaria do sumiço em massa dos judeus e de suas novas moradias distantes. Os soldados que diziam apenas cumprir ordens desconfiariam de que aquilo ali coisa bacana não era não. E, finalmente, todos desconfiariam da história que narra a bela trajetória dos povos germânicos através dos tempos e a chegada dos judeus-ratos que tiraram seus postos de trabalho e sugaram suas riquezas. Porque para fazer uma coisa daquelas há que ser como os negacionistas e os positivistas: tem que acreditar demais e duvidar de menos.

Referências:

FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche: esquecimento como atividade. Cadernos Nietzsche, São Paulo, nº 07, p. 27-40, 1999.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
______. Relações de força: história, retórica e prova. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
JIMÉNEZ, José L. Rodrigues. El debate en torno a David Irving y el negacionismo del holocausto. Cuadernos de Historia Contemporanea, Madrid, nº 22, p. 375-385, 2000.
LEGIÃO Urbana. Sereníssima. Compositor: Renato Russo. Álbum: V. Faixa: 06. Gravadora: EMI, 1991.
NIETZSCHE, Friedrich W. Genealogia da moral. São Paulo: Brasiliense, 1988.
VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Campinas: Papirus, 1988.
VOIGT, André F. O Holocausto, entre o realismo e o relativismo historiográfico: uma introdução ao estudo do Holocausto. Revista História e-História, Campinas, online, 2009. [Disponível em: http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=94].

[1] Quem quiser saber mais, escrevi uma resenha deste livro no ano passado aqui no blog: Relações da forca: o historiador como juiz e policial em Ginzburg.
[2] De acordo com o texto de Jiménez, David Irving, apesar de sempre controverso, gozou de reconhecimento no início da carreira, escrevendo sobre a Segunda Guerra Mundial, alguns de seus livros foram bastante lidos e traduzidos em diversas línguas. Entretanto, sua fama sempre se deu mais pela polêmica levantada em suas obras e pelo aparecimento em canais de televisão do que por sua erudição – não que não tivesse alguma. Sua figura esteve associada aos revisionistas e negacionistas, e foi ganhando cada vez mais simpatia com os neonazistas. A partir de certo momento foi convidado a integrar o Instituto Histórico Revisionista na Califórnia que é ligado a organizações neonazistas. Em seus últimos livros, Irving começou a abonar ou neutralizar o papel de Hitler no Holocausto, atribuindo ao ministro da propaganda Joseph Goebbels e ao comandante da SS, Himmler, a culpa pelas mortes. Ao primeiro por colocar na cabeça do Fürer a ideia dos assassinatos por fuzilamento, e ao segundo pelas más condições no campo de trabalho. Ainda assim, ele rejeita as execuções pela câmara de gás, dizendo que as mortes que aconteceram foram normais para uma situação de guerra. Irving processou Deborah Lipstadt pelas críticas que fez a seus livros. E em 2000, o tribunal inglês deu parecer favorável a Deborah, onde foi decidido que Irving “manipulou fatos históricos bem documentados para dispor os acontecimentos em concordância com sua ideologia” (JIMÉNEZ, 2000, p. 282).
[3] O historiador André Voigt (2009) aponta que Rancière encontrou uma saída interessante para responder os negacionistas sem cair nos pressupostos dos historiadores. Para Rancière o Holocausto é uma realidade histórica e o negacionismo é falso, mas para escaparmos da imobilidade da história (e também da política) devemos assumir três axiomas: “o tempo é sem relação com a verdade; o acontecimento é sem relação com o possível; o real é sem relação com o realismo”. Esta é uma proposta ética-política para neutralizar o discurso negacionista, abandonando a democracia consensual para dar lugar a uma rediscussão dos papeis sociais numa nova partilha do sensível.
[4] Tratei exatamente deste assunto no seguinte post: Por que Nietzsche não é um relativista?

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