quarta-feira, 22 de maio de 2013

O riso do mesmo: o humor aquém do bem e do mal?


“O humorista é um moralista que se disfarça de sábio”.
Henri Bergson


O filósofo francês Gilles Lipovetsky descreve que o Ocidente, a partir do final do século 20, transformou-se numa sociedade humorística. Ao lado dos dramas encenados nas mídias de massa e protagonizados pelos escândalos, catástrofes, clima de crise, entrevistas e declarações bombásticas, tem se desenvolvido quase que imperceptivelmente o código humorístico. É possível perceber este fenômeno do humor em várias situações e lugares. Nas manchetes de jornais (ainda que tragam notícias sérias), nos títulos de artigos acadêmicos, no aumento de espaço às charges e aos quadrinhos cômicos, na arte contemporânea (Duchamp, antiarte, surrealismo, arte pop, teatro do absurdo), nos programas de TV, nas apresentações esportivas, nas redes sócio-virtuais, na política, na publicidade, na moda, etc.

Lipovetsky considera que o humor já existia em outras sociedades e épocas, vide a carnavalização do “cômico grotesco” da Idade Média (que chegava a celebrar uma missa tendo como padre um asno) e a “comicidade crítica” da Idade Clássica. Entretanto, na sociedade contemporânea o humor se alargou a tal ponto que rompeu a linha que separava o momento ou lugar sério do não-sério. E esta seria a principal característica das sociedades pós-industriais. “A descrença pós-moderna, o neoniilismo que toma corpo não é nem ateu nem mortífero: é a partir de agora humorístico”, aponta Lipovetsky (2005, p. 112). Aqui, o neoniilismo, compreendido como uma indiferença pura, uma certa displicência à vida, às pessoas, aos valores morais e sociais,  é sem dúvida a válvula propulsora para o alargamento do riso, pois, “a indiferença é seu ambiente natural. O maior inimigo do riso é a emoção”, afirma Bergson (1983, p. 08). É preciso esquecer, ao menos por instantes, a afeição que temos por alguém para rirmos deste. No entanto, Lipovetsky assegura que o humor atual não cria mais vítimas, nem alvos. O tom do cômico seria lúdico, positivo e despretensioso porque as injúrias e as blasfêmias não fazem mais rir por não serem espontâneas e por não deixarem o clima mais leve – que, segundo o filósofo, são requisitos para o humor contemporâneo.

As análises sociais de Lipovetsky se aplicam em grande medida às terras tupiniquins. Além disso, igualmente ao europeu-estadunidense, o humor da contemporaneidade brasileira está ligado ao consumismo de bens imateriais. As informações, as propagandas e a alegria são vendidas em massa. É só reparar o crescimento de canais de humor no YouTube e de programas de TV que pretendem-se engraçados, os inúmeros produtos (shows, DVDs) de Stand-Up Comedy e as páginas no Facebook direcionadas a esta temática. O humor neoniilista investe-se contra a esfera do sentido social, tornando os valores superiores em paródicos. Como exemplos, a eleição do comediante Tiririca ao cargo de deputado federal (mais bem votado em São Paulo) e, recentemente, um evento virtual anunciando o Golpe Comunista em 2014. Os dois: pura gozação! O que não deixa de ser sintomático ao que Nietzsche dizia sobre a condição do niilismo: “os valores superiores depreciam-se”. No entanto, no Brasil tem acontecido o contrário das afirmações de Lipovetsky, quando estas expressam que o humor atual não ofende e nem faz vítimas. Pelo contrário, não é raro vermos processos jurídicos e manifestações políticas de pessoas contra humoristas por sentirem-se humilhadas ou discriminadas. Creio que estes acontecimentos estão ligados de alguma maneira a duas configurações atuais.

A primeira são as lutas e as conquistas de determinados grupos a direitos sociais antes negados. Fazem parte destas a ampliação do acesso às universidades (a construção de novas instituições, o financiamento de mensalidades, as bolsas de estudo do ProUni, as cotas étnicas e sociais), a tentativa de distribuição de renda a famílias pobres (bolsa-família, bolsa-escola, redução da tarifa de energia), as pautas políticas e sociais contra a homofobia (e em favor do direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo) e a intensificação pública dos movimentos feministas (vide Marcha das Vadias). Tudo isso sob um governo neoliberal que tende a caminhar em direção a um Estado de Bem-Estar Social, mas que encontra bastante resistência de alguns seguimentos religiosos, da elite e da classe média intelectualizada que controlam os meios de comunicação. Usados às vezes para destilarem toda suas contrariedades através da voz convidativa de comediantes e de piadas que, por mais engraçadas que sejam, nada possuem de inocentes. O outro aspecto está ligado ao próprio modelo de comédia predominante: o Stand-Up. No blog Ensaios de Gênero, Senkevics pondera que “se antes predominava uma caricatura que, de tão caricata, parecia inofensiva sem deixar de ser engraçada, com a comédia stand up situações cotidianas são trazidas para o palco e, com elas, uma proximidade maior com a vida de cada um”. No humor, mais do que nunca, a vítima é produzida. O perfil desta deve fugir do “padrão” moral-social idealizado: um negro, uma mulher, um pobre, um judeu, uma feminista, um gay, um careca, um gordo, um baixinho. Ou pode ser também uma celebridade, um artista, um político, enfim, uma pessoa conhecida.

Não pretendo comentar os casos jurídicos envolvendo celebridades, até porque estas conseguem se defender muito bem. Em geral, possuem grana e bons advogados para isso. Mas, ao contrário do que se passa em maioria, me parece mais positivo um humor que atente de certa forma contra os preconceitos e as certezas da sociedade do que o que acaba reafirmando estes preconceitos e certezas. Cito como exemplo um dos vídeos do canal Porta dos Fundos em que o deus polinésio é o único verdadeiro [clique aqui para assistir].

Socialmente, seria mesmo interessante um tipo de humor que fizesse as pessoas pensarem e, até mesmo, as incomodassem, ao invés de simplesmente servir para massagear seus egos. Sobretudo, porque além da sociedade atual ser humorística, ela também é narcisista (ou neonarcisista como prefere Lipovetsky). O herói ou o avatar favorito da sociedade ocidental contemporânea é Narciso. Aquele mesmo que olha para o espelho d’água e apaixona-se por sua imagem refletida. Mergulha dentro de si mesmo e morre afogado. A sociedade narcisista sente-se confortável quando olha para o lado e vê o Mesmo, o Idêntico, o espelho. (Então, tomara que não afogue-se como seu herói!) Assim, ela acaba reproduzindo o já visto, o já conhecido, fechando-se para o novo, para o diferente e instaurando uma separação moral entre os bons (iguais a si) e os maus (diferentes de si); excluindo os diferentes em pequenos gestos e risos.

Só o sabão é neutro

Mas tudo que falei acima não quer dizer que eu defenda um controle estatal dos meios de comunicação de humor ou uma vigilância ética sobre as piadas cotidianas, por mais preconceituosas e ofensivas que possam ser. O que quero chamar a atenção é para a recorrente expressão que diz assim: “Foi só uma piada!” Quem diz isto está pedindo passagem para dizer qualquer tipo de preconceito e ser aplaudido de pé. As piadas não são coisas que estão aquém ou além do bem e do mal. Não são neutras! Expressam posições políticas e ideológicas, estão permeadas por visões e interpretações do mundo e da sociedade. Deste modo, defender que humoristas e comediantes possam dizer quaisquer coisas sem serem incomodados é como dar a eles o poder de um ser metafísico como Deus – que não está “no” mundo, mas “além” dele. A simpatia de humoristas pode ser enganosa e a ironia pode maquiar seus rostos como sujeitos mais sábios do que realmente os são, fazendo-nos acreditar que possuem as respostas para qualquer tipo de problema. Recentemente, o comediante Beppe Grillo concorreu ao cargo de primeiro ministro da Itália e chegou a possuir um terço das intenções de voto. Com um discurso nitidamente demagógico, seus comícios eram verdadeiros shows e reuniam milhares de pessoas. Estranhamente, em aparições públicas o candidato erguia a mão direita num sinal que relembrava bastante um gesto simbólico do fascismo.

O argumento principal dos comediantes sobre os processos e manifestações públicas contra determinadas piadas é a defesa da liberdade de expressão e da anti-censura. Ora, uma reação a qualquer coisa dita publicamente ou não também faz parte da liberdade de expressão, não? A proibição pode atravancar qualquer sociedade que se queira democrática. Mas isto não quer dizer que caso uma pessoa ou um grupo se sinta ofendido, humilhado ou discriminado o mesmo não possa reivindicar uma reparação jurídica. Afinal, este é um exercício democrático. Se através de seus representantes a sociedade julgar que a ação é um dano a pessoa ou grupo, cabe aí uma indenização feita pelo responsável. O humor não pode ser impedido. Nem a acusação sobre ele. O jogo é esse!

Por outro lado, vejo às vezes certa “inocência” na defesa da liberdade de expressão. Há pouco tempo num fórum anarquista, um membro repreendeu outros que manifestavam sua desaprovação a um neonazista que agrediu um morador de rua. Os anarquistas propunham desde o combate a tais ideias até a prisão e a execução dos envolvidos. Então, este rapaz dissera que os anarquistas eram tão nazistas como aqueles por defenderem tais coisas e não deixarem as pessoas serem livres. Ora, é claro que o pensamento dos anarquistas beirou o extremismo quando defenderam a execução dos neonazistas, no entanto, defender a liberdade de expressão do nazismo ou de qualquer outra ideologia, filosofia ou princípio que, por considerar seu grupo fisiologicamente superior, pregue o extermínio físico dos demais é um contrassenso. É uma liberdade usada para tolher a liberdade de todos os outros. É uma liberdade que atenta contra as outras liberdades. E por isso não pode ser admitida. Obviamente que a saída não é exterminá-los. Mas também não se pode permitir a existência e expressão de tais ideais, já que podem provocar o extermínio de todos os outros. Neste sentido, como o velho Bakunin falava, creio que a minha liberdade deve somar-se a do outro e não diminuí-la ou suprimi-la. Pois é chegada à hora de rir com os Outros mais do que rir dos Outros.

Referências:

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico [1940]. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade humorística. In:______. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri-SP: Manole, 2005, p. 111-144.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. São Paulo: Ed. Escala, s/d. 
SENKEVICS, Adriano. O humor na berlinda. In: Ensaios de Gênero: Três garotos feministas ensaiando política, educação, feminismo e coisas do gênero (blog). 14 dez. 2012.

Para fomentar o debate, deixo abaixo o documentário que me motivou a escrever este post e que considero bastante interessante para pensarmos a questão dos limites e excessos do humor. Direção de Pedro Arantes.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Os documentos da História: uma iniciação do historicismo aos Annales

Podemos considerar que foram os historicistas alemães os precursores da discussão acerca da verdade, do método e dos documentos no ofício do historiador. Júlio Bentivoglio salienta que o historicismo possui uma dívida com o pensamento de Chlaudenius, autor que, no século 18, apresentou concepções avançadas para a pesquisa histórica. Chlaudenius teria destacado o ponto de vista dos sujeitos históricos e dos historiadores-narradores, revelando que o conhecimento histórico é marcado pela crítica, tanto da perspectiva do historiador, quanto dos testemunhos. Isso não quer dizer que o trabalho estivesse contaminado pela subjetividade, que impossibilitaria o método, mas sim que era preciso reconhecê-la como uma ferramenta para a compreensão correta sobre a verdade.  

Bentivoglio apresenta outros postulados do historicismo alemão, como: a compreensão do passado, a busca por objetividade, as técnicas de história documental, como a desconfiança dos testemunhos para que se evitasse a reprodução acrítica do que os documentos diziam, o cuidado com o anacronismo (Niebuhr); a fabricação de uma agenda científica para os historiadores prussianos, que versava a proposta de reunir os fatos, procurando os nexos, identificando suas forças motrizes e os reproduzindo por meio de uma exposição narrativa, ou seja, seguir procedimentos científicos e não abandonar a atividade criadora em seu ofício (Humboldt); a separação da história à literatura ficcional, pois embora o discurso escrito fosse parecido, o historiador não poderia inventar os acontecimentos através de sua imaginação como o literato (Gervinus).

Contudo, os autores que mais se destacaram no historicismo alemão do século XIX foram Droysen e Ranke. O primeiro escrevendo um manual de teoria da história que ainda hoje é lido, por sua composição epistemológica particular; e o segundo, o historiador de uma produção vasta concebida pelo domínio da prática e pela defesa do método caro ao seu trabalho. Ranke, assim como outros historicistas, possui uma nítida inspiração da história de Hegel, quando expõe que o ponto de vista do historiador deve ser divino e a verdade acerca do tema retratado deve permanecer única mesmo que várias obras sejam escritas. De acordo com Pedro Caldas, a busca por objetividade de Ranke fez com que ele negasse um grau de subjetividade. Que grau era esse? A subjetividade vetada é aquela caracterizada pelo simples arbítrio, pela atribuição prévia de um sentido ao texto. Por isso, o historiador não deve ler o texto com preconceitos ou significados previamente determinados, do contrário, toda investigação será ociosa e a verdade nunca encontrada além do “já sabido”.

Ranke desenvolveu um pensamento crucial à discussão acerca dos documentos e fontes históricas. O autor desconfiou dos relatos sobre o passado, criticando àqueles pesquisadores que faziam história com base no que foi dito por outros a partir de outras histórias, por isso se segurou na autoridade exclusiva do imediato e na importância das fontes. Entretanto, ao contrário do que comumente se acredita na comunidade de historiadores, de acordo com Pedro Caldas, Ranke critica a passividade perante os documentos, pois estes não seriam a residência fixa da verdade, mas somente “papéis mortos” que a vida se revelaria pouco a pouco quando o espírito do leitor (a maneira da interpretação luterana) penetrasse no texto. Não é a imparcialidade que caracteriza a obra de Ranke, porém seu receio de tomar partido, uma cautela fundamental para a cientificidade, conforme argumenta Caldas. A importância de Ranke se dá não somente pelo que ele defendia, mas também pela recepção do autor, que acabou causando uma formação discursiva cara a historiografia moderna do século 20. Vejamos do que se trata essa recepção interpretativa.

Peter Burke atribui à crítica que foi feita a prática historiográfica de Ranke mais aos seus seguidores (os rankeanos) do que propriamente a ele, porém, não há dúvidas que alguns desses elementos aparecem também no trabalho de Ranke. Usualmente o autor virou uma sinonímia do historicismo, o que acreditamos ser uma consideração problemática visto a gama de historiadores heterogêneos que se inserem a essa corrente. A primeira crítica a Ranke é dirigida em relação à sua suposta defesa da neutralidade, uma interpretação da exposição na qual o autor diz que “quer fazer a história do modo que ela aconteceu”. A busca da verdade por Ranke lhe valeu a alcunha de historiador eunuco por Nietzsche, quando o filósofo disserta sobre a “febre da história” que marcava o momento intelectual da crítica à metafísica em prol da consciência histórica. Mais do que isso, a historiografia moderna criticou a história rankeana por ela ser eminentemente política, eixo a partir do qual submetiam as outras esferas da sociedade. Por conta desse privilégio do político, os historiadores rankeanos faziam uma espécie de hierarquização dos documentos, dizendo que os documentos escritos e oficiais, ligados ao Estado e preservados em arquivos, eram mais importantes e confiáveis que os demais. Nada incomum, se situarmos esses historiadores em seu contexto social do período. Boa parte desses autores integrava os projetos de Estado-nação e unificação da Alemanha, alguns como conselheiros diretos do rei.

Outra corrente historiografia, a Escola Metódica Francesa, seguia uma linha parecida (de condução da pesquisa) a dos “rankeanos”. Priorizava os documentos escritos aos quais à crítica do historiador só deveria se reportar para destruir informações ilusórias, nunca criando outras. Em busca da verdade, Langlois e Seignobos, expoentes desta vertente, dizem que a crítica apenas classifica, nos mostra probabilidades criando etiquetas: afirmação sem valor, afirmação suspeita (fortemente ou fracamente), afirmação provável ou muito provável, afirmação de valor desconhecido. Esses autores procuravam adotar um modelo de história que estivesse adequado a ciência natural que, embora constituísse um procedimento próprio, nunca poderia entrar em confronto com as ciências físicas consideradas “exatas”.

Segundo Peter Burke, o surgimento da chamada “Nova História” no século XX rompe com o paradigma tradicional da historiografia, que era visto como o único jeito de fazer se história. Os historicistas e os metódicos são considerados os representantes deste paradigma tradicional, que não raras vezes (ambos) são chamados de positivistas, por conta da leitura que os aproxima das ciências naturais e da tentativa de neutralidade. Para Burke, algumas mudanças foram claras em relação ao modo de fazer história tradicional. Com a Escola dos Annales, há o interesse por toda a atividade humana, tudo tem um passado e uma história. Daí, a expressão “história total” cara aos autores dos Annales. Desta maneira a história política deixa de ter privilégio sobre as demais, aliás, devido à inspiração marxista, apontada por Jacques Julliard, a política é relegada ao segundo plano, pois estaria ligada aos acontecimentos que seriam apenas espumas trazidas pelas ondas do mar da história de longa duração, protagonizada pelo econômico e social (expressão de Braudel, da segunda geração dos Annales).

A partir da Escola dos Annales, muito em função do interesse por toda a atividade humana, houve uma expansão da documentação no trabalho do historiador, deixando de ser restrita aos documentos escritos e oficiais produzidos pelo Estado. Nesta geração de pesquisadores, todos os documentos passam a ser utilizados como evidências: os documentos orais e visuais, os objetos e utensílios, as estatísticas e os dados, fabricados em diversas esferas da sociedade com as quais a pesquisa pretende investigar. Tudo que for indício da atividade humana é incorporado à documentação da pesquisa história, pois como escreveu metaforicamente Marc Bloch, o historiador deve ser como o ogro da lenda que fareja carne humana atrás de sua caça.

A defesa da interdisciplinaridade pelos Annales provocou a inserção de outras ciências humanas e sociais como auxiliares na pesquisa histórica. Mais do isso, conforme salienta Burke, a Nova História rejeita a ideia de história objetiva de Ranke, a que queria contar “os fatos da maneira que eles aconteceram”. Pois, embora a história seja um conhecimento cientificamente conduzido através de um método, a objetividade é impossível sem a subjetividade, pois nossas mentes não refletem diretamente a realidade, mas só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra. Nossa percepção dos conflitos é certamente mais realçada por uma apresentação de pontos de vista opostos do que por uma tentativa de articular um consenso. Segundo Canclini, essa exposição da Nova História está baseada na crítica à consciência absoluta do sujeito cartesiano feita inicialmente por Nietzsche, que descreveu a genealogia da moralidade da consciência cristã ocidental, Marx, que particularizou as consciências históricas conforme os interesses de classe e, Freud, que diagnosticou os conflitos internos da consciência, onde “o ‘eu’ não é senhor dentro da própria casa”.

Embora já houvesse a atenção de alguns autores historicistas para o caráter subjetivo da pesquisa historiográfica e para a necessidade da crítica do pesquisador frente aos documentos, foi mesmo com os Annales que ela foi, pelo menos, popularizada e sintetizada. Jacques Le Goff, integrante da fase tardia do Annales, num artigo escrito no final do século XX, advoga a importância de tratar os documentos como monumentos. Para o historiador, os monumentos nunca são neutros, nem a própria existência dos mesmos, estes só chegam até o presente por conta de forças impostas e vencedoras do passado que querem transmitir algum tipo de imagem da sociedade que os produziram. São as escolhas dos historiadores que determinam quais monumentos que serão utilizados como documentos, mas os dois são uma coisa só. Le Goff critica Fustel de Coulanges, autor que teria dito que “a única habilidade do historiador consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm. O melhor historiador é aquele que se mantém o mais próximo possível dos textos”. Segundo Le Goff, esse era um postulado típico da “escola positivista”, a qual defendia a primazia dos documentos, que assumiam o lugar de prova, logo de comprovação da verdade. Le Goff acredita que a Escola dos Annales proporcionou uma revolução documental em duas medidas. Primeira, quantitativa e, segunda, qualitativa.

Quantitativa: houve uma ampliação que já foi explicada, e através dela operou-se o trato da documentação em massa, medido por seu valor em série, onde há a confrontação de vários tipos de documentos, sob várias perspectivas através das quais o objeto de pesquisa pode ser estudado. Por exemplo, ao investigar as revoluções européias de 1848 o historiador poderia acumular documentos produzidos pelas elites, pelos líderes políticos de massa, pelos filósofos, pelas classes pobres ou fazer uma análise cruzando acontecimentos políticos a dados econômicos e de crescimento demográfico, numa escala comparativa de curta ou longa duração. Na era do computador e do processamento de dados, uma vertente da história quantitativa cresceu bastante, chegando ao ponto de determinados pesquisadores da linha (os chamados “cliometras” segundo Joseph Fontana) dizer que somente esse tipo de história pode ter um conhecimento científico seguro.

E. P. Thompson fez uma crítica consistente ao tipo de história que se baseia apenas no valor quantitativo dos documentos, para o historiador inglês, os números de um cálculo estatístico pouco dizem ao historiador se não levarmos em conta o fator cultural e a mudança de um determinado contexto histórico. Ele aponta como exemplo o crescimento da média dos salários do operariado inglês durante a Revolução Industrial, que obscurecem a compreensão da conjuntura se não olharmos o crescimento proporcional do número de pobres com o aumento da população e a mudança nos costumes cotidianos destas pessoas, a noção do tempo fabril regrando a vida é uma delas.

Qualitativa: Lucien Febvre diz que o mais apaixonante do historiador é fazer falar as coisas mudas, fazê-las dizer o que elas próprias não dizem sobre os homens, sobre as sociedades que as produziram. Com os Annales, a crítica ganha um papel essencial na pesquisa histórica. Agora o historiador não precisa estar cada vez mais colado ao texto para produzir conhecimento sobre o passado, como quis Coulanges, mas sim, é necessário questionar os documentos. Diante dos enunciados escritos, por exemplo, é preciso fazer as três perguntas do método básico de análise: O que é? Por quê? Para quem? Cabe ao historiador investigar as intencionalidades por trás da existência do documento, como também o que ele diz e, portanto pretende esconder e mostrar; não mais simplesmente reproduzi-lo, pois não existe documento inócuo, objetivo, neutro, primário, todos devem ser compreendidos como instrumentos de poder. Foucault já havia apontado sobre o aspecto monumentalista de todo documento, mas ao contrário dos Annales, o filósofo-historiador não quis fazer os documentos falarem, e sim através do método arqueológico descrever os monumentos, fazendo séries e investigando a produção dos regimes de verdade, ligados as instituições de poder e saber, e as regras discursivas pelas quais tornaram possível pensar, falar e agir da maneira que pensamos, falamos e agimos a partir da modernidade.

Referências:

BENTIVOGLIO, Júlio. Cultura política e historiografia alemã no século XIX. Revista de Teoria da História – Goiânia: UFG, ano 1, nº 3, p. 20-58.
BLOCH, Marc. Apologia da história: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In:_____. A escrita da história: novas perspectivas. SP: Unesp, 1992, p. 7-38.
CALDAS, Pedro. O espírito dos papeis mortos: um pequeno estudo sobre o problema da verdade histórica em Leopold Von Ranke. Emblemas – Revista do departamento de História e Ciências Sociais – UFG/CAC, v. 1, n. 3, 2007.
CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
FONTANA, Josep. História depois do fim da História. Bauru: Edusc, 1998.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In:_____. História e Memória. Campinas: Unicamp, 1996.
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa, vol. II: a maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
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